I
Sentou-se com dificuldade no banco da praça, apoiando-se em uma bengala de madeira de cabo de madrepérola, agora sua fiel companheira. O mesmo banco da mesma praça dos últimos dez anos. Fazia algum tempo que ele começou a perceber as mudanças em seu corpo. A calça de linho recobria o corpo magro e frágil que outrora foi o corpo negro, forte e musculoso de um jogador de futebol, testemunhando a velhice que chegava lentamente.
Com a aposentadoria na serralharia, um de seus passatempos prediletos era ir até a praça Afonso Pena, perto de sua casa, e ficar olhando as crianças. Conhecia todas as que brincavam ali e quando um rostinho novo aparecia, ele tratava de se apresentar.
- Olá, meu rapaz! Eu sou o tio Zimba! E você, como se chama?
Já estava acostumado ao ritual e as crianças, nenhuma delas tinha medo dele. Ao contrário, elas o adoravam.
- Tio Zimba! Tio Zimba! Ajuda a gente a fazer a escalação dos times!?
E lá ia o tio Zimba, do alto de seus setenta e seis anos, escalar os times. Apesar do pouco espaço daquela praça destinado ao futebol, era possível bater uma bolinha sem incomodar quem passava ou desfrutava da sombra de suas árvores.
II
Nessa hora, era como se o “véio” Zimba tivesse novamente onze anos, tempo em que jogava futebol de várzea perto de casa, em Duque de Caxias. Já era um menino alto, esguio, um excelente meio de campo. Zimbinha, como era chamado, dava sempre os melhores passes, era sempre citado nos melhores lances e muito disputado na hora da escalação. Nunca fora um artilheiro, nem capitão do time, porque não precisava. O que ele queria era estar sempre jogando, pois não suportava ficar no banco de reservas.
No meio das inúmeras peladas no campo de terra batida, Zimbinha foi descoberto pelo olheiro do São Cristóvão Atlético Clube. Conversa com a mãe de cá, conversa com o pai de lá, Seu Mathias, o olheiro, consegui convencê-los de que aquela era uma grande chance para o menino, que assim eles poderiam ter a certeza de que ele iria estudar, que não ficaria mais na rua à toa e que seria bem orientado.
Aqueles foram tempos felizes, de muito futebol, muito treino e muitos exercícios físicos, para encorpar o menino Zimba. Às quintas-feiras, ele e seus amigos de clube pulavam o muro para ir ao baile. Todo mundo sabia, até o treinador, mas fingia que não sabia.
Em um desses bailes, Zimba conheceu Ana Rita, uma mulata faceira, cheia de curvas, dois anos mais velha, que mudou sua vida. Foram muitas as vezes que, mesmo cansado do treino, Zimba foi ao baile só para ver Ana Rita.
Um dia, tomou coragem e tirou Ana Rita para dançar. Zimba estava mais confiante do que nunca, pois acabava de fazer 15 anos, pêlos no rosto, já era um homem!
- Só danço com você no dia em que você marcar um gol para mim...Só para mim, pediu Ana Rita. Aquele pedido se transformou na grande meta de Zimba, que passou a treinar cada vez com mais afinco.
No dia 13 de agosto de 1944, um domingo à tarde, a seleção de juniores do São Cristóvão, que desde 1943 já era Futebol e Regatas, após fundir-se com o São Cristóvão de Regatas, jogava a decisão contra o América Futebol Clube no campo do estádio da Figueira de Melo, o Figueirinha. Casa lotada em São Cristóvão, oito mil lugares ocupados! Zimba colocou o uniforme preto e branco, olhou-se no espelho, estufou o peito e pensou: “Hoje, eu marco o gol da Ritinha”.
Aquele jogo foi o mais emocionante de sua vida, ele se recorda. Nunca mais jogou uma partida como aquela.
Uma distensão na coxa esquerda impediu que ele entrasse no primeiro tempo. Ficaria no banco de reservas, o que certamente lhe traria grande angústia. “Eu preciso de uma chance para fazer este gol, eu preciso”, pensava Zimba a todo instante, sabendo que Ritinha estaria ouvindo o jogo pelo rádio, ela lhe garantira.
Aos trinta minutos do primeiro tempo, o principal atacante do América marcou um golaço! Zimba começou a ficar ainda mais apreensivo com sua situação, pois sabia que podia ajudar o time a ganhar o campeonato. No intervalo, o técnico pediu um pouco mais de paciência a Zimba, orientou-lhe para fazer aquecimento, garantindo sua entrada em campo aos quinze minutos do segundo tempo. Zimba começou os exercícios e logo sentiu a coxa esquerda, mas não deixou que ninguém percebesse.
Ao entrar em campo, fez o sinal da cruz, como de costume, e pediu a Deus que o ajudasse a marcar o gol prometido. Na primeira oportunidade com a bola, Zimba surpreendeu a todos, driblou o centro-avante, estonteou o zagueiro e chutou no ângulo direito do gol, sem chance de defesa para o goleiro do América. “Como era mesmo o nome daquele goleiro? Ah, minha memória, onde você anda?” Cinco minutos depois, foi sua mestria com a bola que resultou no passe que levaria ao segundo gol do São Cristóvão e fecharia o placar do jogo: 2x1.
Zimba saiu de campo aclamado pela torcida, ao final da partida. Ao ser entrevistado pelo radialista, fez questão de dizer que o seu gol era para Ana Rita de Oliveira, a Ritinha, sua namorada. Em seguida, foi procurado por um senhor que o convidou a integrar o time do Clube de Regatas do Flamengo.
Ao chegar em casa, em Duque de Caxias, lá estavam seu pai, sua mãe, seus irmãos e amigos de futebol de várzea, orgulhosos de sua grande feita, e Ritinha, que fez questão de dançar com ele ali mesmo, na frente de todo mundo, ao som da batucada da rua, comemorando a vitória e a boa nova que já se espalhara. Zimba nunca ficou rico com o futebol, mas teve a vida que pediu a Deus enquanto atuou no Flamengo, primeiro como jogador, depois como assistente do treinador e finalmente como massagista.
III
O sol já estava se pondo na praça Afonso Pena. O “véio” Zimba tem dessas coisas de se perder nos pensamentos do passado. Sorri com suas lembranças, ninguém sabe de que feita ele ri. Ah, como a Vó Rita sabe disso!!
- Meu “Véio”! Ô, meu “véio”! Vamos embora que a subida é longa até a Rua do Bispo!
E assim eles seguem todos os dias, ao pôr do sol, de braços dados, bengala dando apoio, cumprimentos aos amigos de praça, pés arrastando na terra do parquinho, em direção ao casebre onde vivem na favela, o Tio Zimba, a Vó Rita e o maior amor deste mundo.
sábado, julho 15, 2006
domingo, julho 02, 2006
Um trecho de Tabacaria (Fernando Pessoa)...
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem
não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado,
já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e
dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem
não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado,
já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e
dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
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