domingo, fevereiro 22, 2015

Sobre shows e musicais que deveríamos ver...

Elis, Cazuza, Adriana, Cássia


Recentemente, assisti o musical Cazuza, depois o documentário da Cássia, e em seguida, o musical sobre a Elis. Nesta sequência. Foi um resgate. De músicas, memórias pessoais, história do Brasil. E um aprendizado.

Teve coisa que fez muito sentido.

Ainda vi o show da Adriana em meio a dor de uma quase perda, que virou perda uma semana depois. E ela estava tão linda, foi tão profissional e atenciosa com seu público. 


Minhas lembranças das letras das músicas me surpreenderam.


Essas pessoas são incríveis, poetas maravilhosos, letristas fantásticos, arranjadores... Cada um a sua maneira. A gente tem tanta gente boa entre nós. E ainda tenho amigos que dizem não gostar de MPB. Como um povo pode se expressar senão através de sua música?!


Que bom que eles existem/existiram, e souberam expressar na música suas dores, amores, alegrias e paixões. Quem pode/pôde usufruir de tudo isso somos/fomos nós...



terça-feira, fevereiro 03, 2015

Acerto de contas





É inverno no hemisfério sul. São seis horas da tarde de um dia seco na serra. O ambiente sugere uma casa isolada no meio do nada, ligada a uma estrada principal por uma vicinal bem pequena. Um carro se aproxima da casa lentamente, levantando poeira, trazendo dois ocupantes.

Dentro deles, Flávio e sua mãe, Edna, pouco conversam. Ele está atento ao caminho enquanto ela observa a paisagem e se alegra ao ver o pequeno chalé de cinco cômodos.

Flávio, operador da Bolsa de Valores de SP, um homem maduro, com idade entre 45 e 50 anos, quer chegar logo a casa e fazer o que tem que ser feito o mais rápido possível. Está claramente desconfortável por ter sido escalado pela mãe para esta missão. Afinal, podia ter sido o irmão.

Edna, professora aposentada, com idade entre 65 e 70 anos, anseia por rever a casa em que foi tão feliz por tanto tempo com Fábio, comandante, aviador, morto na década de 80, na “flor da idade”.

Quando Flávio para o carro, Edna corre para abrir a porta principal e entra na casa, esquecendo mala, bolsas, e mantimentos para trás. Pacientemente, Flávio segura o que consegue carregar e entra em seguida.

EDNA
Me deixa abrir as janelas porque esta casa está com cheiro de mofo. Flávio, Flávio, chega aqui. Vem ver isso.

(Edna fica imobilizada olhando uma gigantesca teia de aranha no canto do quarto)

FLÁVIO
O que é, mãe? Peraí, estou carregado. Esqueceu que deixou tudo para trás?

(Balançando a cabeça, com ar de reprovação, já um pouco impaciente)

EDNA
Ô, meu filho, deixa eu te ajudar (aproxima-se de Flávio para segurar algumas bolsas e depois, leva duas delas para o seu quarto)

FLÁVIO
(Pega um bloco dentro da sua bolsa de couro e começa o inventário de itens a consertar)

A lareira está entupida, precisando de uma limpeza... as dobradiças das janelas... o estofamento do sofá... o assoalho, está meio estofado... há uma goteira aqui... ih, mãe, acho que essa reforma vai dar pano pra manga (gritando para ela)

EDNA
Eu sei, meu filho, mas mãe ainda tem algum dinheiro guardado, vai dar para reformar uma parte. Vou passar um café... quer café, meu filho?

FLÁVIO
Quero, mãe, vai ajeitando tudo aí, enquanto eu continuo checando as coisas... (esfrega uma mão na outra, puxa a gola da camisa pra cima, fecha um pouco o casaco) Nossa, como está frio! Diz aí, mãe, quanto está marcando o termômetro aí na cozinha?

EDNA
(Checando a temperatura no termômetro, como ordenou o filho)

9 graus, meu filho, 9 graus. Está frio à beça. Se continuar caindo, vamos congelar...

(olhando pela janela melancolicamente)
A grama também está precisando ser aparada, meu filho. Será que aquele cortador de grama ainda funciona?

FLÁVIO
(Aproximando-se da cozinha e encostando no espaldar da porta que a separa da sala)
Vamos ver, minha mãe, vamos ver... uma coisa de cada vez.


Faz-se então um silêncio, enquanto Edna arruma o bule e o coador no qual passará o café fresco. Pega duas canecas. Flávio observa a mãe. De repente, em moto contínuo, abre a bolsa de couro e pega um maço de cigarros. Puxa um e o acende cuidadosamente, evitando o vento frio que entra pela janela.

FLÁVIO
(Provocando a mãe)

Quer que eu acenda um pra você, mãe?

EDNA
(Irritada e nervosa, olhando para ele por cima do ombro)
Você está cansado de saber que eu parei de fumar há mais de 20 anos. Para de me ‘tentar, menino.

FLÁVIO
(Dando de ombros, com uma risadinha no canto da boca)

Não está mais aqui quem perguntou...

(Virando-se de costas para ela)


Faz-se outra pausa. Edna então suspira como se fosse fazer a Flávio a pergunta mais difícil...

EDNA
(Hesitante, mas firme e inquiridora, servindo o café ao filho)

Flávio, me diga, como você foi capaz de permitir que Lúcia o deixasse, meu filho? Ela era uma boa mulher, excelente dona de casa, gostava tanto de você...

FLÁVIO
(Surpreso)

Hã? Eu ouvi direito?

EDNA
Ouviu sim, meu filho, como você deixou que ela saísse de casa? O que você fez, afinal?

FLÁVIO
(Bufando agitado)

Você não acha que está se metendo demais na minha vida, mãe? O que a senhora tem a ver com isso?

EDNA
(Com um ar hipócrita de boazinha)
Tudo, Flávio, eu também gostava dela e gostava de ver vocês dois juntos.

FLÁVIO
(Dando uma baforada comprida no cigarro)


Engraçado, mãe, você nunca se importou. Nunca olhou pro seu filho do meio. Eu sempre fui o enjeitado, o largado, o abandonado da família. Tudo me acontecia e você nem reparava... (suspiro) por que o interesse agora?

EDNA
(Contrariada)

Não é verdade, meu filho, eu sempre olhei por você e seus irmãos. É que eu sempre trabalhei muito, muito. Tinha que dar de comer pra vocês quando o seu pai saiu de casa e depois, quando ele morreu. Não desdenhe da minha luta, não faça por menos...

FLÁVIO
(Respirando fundo e balançando a cabeça, negando a fala da mãe)

Mãe, você nunca ligou pra mim e pro Mário. Só o Zeca, que nasceu temporão, merecia receber sua atenção. Eu e Mário fomos criados a própria sorte. Você está cansada de saber isso.

EDNA
Que injustiça!

(Pausa, Flávio dá uma longa tragada no cigarro e acende outro no que já está fumando, antes que este acabe)

FLÁVIO
(Sério e grave)

Não é, não, mãe. Você sabe que não é. Quando eu me cortei todo naquela cerca de arame farpado no sitio do Juca e precisei de várias suturas, você não ficou nem sabendo. Estava na cama com o seu comandante Fábio. Como sempre.

(Pausa, Flávio recomeça)

Quando caí dentro do rio e quase me afoguei, quem salvou a minha vida foi o Mário e o Tio Carlos. Quando o bode me acertou em cheio na perna, você estava com quem? Com papai, pra variar.

(Pausa, Flávio dá mais um trago e emenda)

Quando caí daquela árvore, aquela araucária graúda, lembra?, você estava transando com o Fábio. Você estava sempre com o papai, vocês se trancavam e ficavam horas incomunicáveis, resolviam tudo na cama... Você...VOCÊ SÓ TINHA OLHOS PRO PAPAI!!!

EDNA
(Contrariada com a intromissão do filho mimado)


O que VOCÊ tem com isso? Era a minha vida, eu era a mulher dele. Ele era muito fogoso, você sabe disso. Gostava de sexo, e eu gostava também. Eu amei muito o seu pai. Foi por isso que seu casamento acabou? Falta de fogo?

FLÁVIO
(Bem alterado, olhos injetados de raiva, espalhando fumaça pra todos os lados)

Não é da sua conta! Nunca foi. Eu sempre fui criado sem mãe. Quer saber mais?

(Pausa, mais um trago longo)
Quando me pegaram fumando maconha com os amigos, você me deixou uma noite preso. Quando levei o primeiro fora da Aninha, você não estava lá para enxugar minhas lágrimas. Você acha que eu gostava?

(Flávio dá uma caminhada em volta da mesa da cozinha e se aproxima da mãe, falando em seu ouvido, intimidando-a)

Quando reprovei no Vestibular, nada... quando muito uma reprovação, uma bronca. Você e papai não estavam nem aí. Mário era o único que olhava por mim.

(Volta-se para a sua cadeira e senta, fitando-a nos olhos, apagando o cigarro na caneca, só para irritar a mãe)

Eu não suportei perder o Mário. Não suportei vê-lo morto naquele acidente de avião. Tudo por culpa do papai, do TEU Fábio, que tinha sempre que se exibir ao pilotar... Só mais uma manobra arriscada, só mais uma... e deixava todo mundo nervoso. Naquele dia, não conseguiu reverter e pronto... morreram os dois. E eu, fiquei duplamente órfão, porque você morreu pra vida também!

(Pausa, Flávio retoma seu ar sarcástico e irônico e continua...)

E agora estamos nós aqui planejando a reforma do teu chalé. Você é louca, mamãe. A Lúcia foi embora porque quis. Pronto. Assunto encerrado. Satisfeita?


Faz-se outro longo silêncio. Edna enxuga as lágrimas. Flávio acende outro cigarro. Observa a fumaça, satisfeito com o despejo de verdades sobre a mãe.


EDNA
(com a voz embargada)

É, Flávio, tua mãe é louca. Uma louca que sempre foi apaixonada pelo marido, acima de tudo. Uma louca que morreu pra vida. Uma louca que acorda dia sim, dia não, pensando em como sobreviver sem o meu comandante. Sou louca.

Você é meu filho largado, enjeitado, o abandonado da família, como você diz. Se é assim que você sente...

Mas, eu, Flávio, eu sempre te amei.

Apesar disso, QUER VOCÊ QUEIRA , QUER NÃO, SOU A PUTA QUE TE PARIU!



--- FADE OUT ---