É inverno
no hemisfério sul. São seis horas da tarde de um dia seco na serra. O ambiente
sugere uma casa isolada no meio do nada, ligada a uma estrada principal por uma
vicinal bem pequena. Um carro se aproxima da casa lentamente, levantando
poeira, trazendo dois ocupantes.
Dentro
deles, Flávio e sua mãe, Edna, pouco conversam. Ele está atento ao caminho
enquanto ela observa a paisagem e se alegra ao ver o pequeno chalé de cinco
cômodos.
Flávio,
operador da Bolsa de Valores de SP, um homem maduro, com idade entre 45 e 50
anos, quer chegar logo a casa e fazer o que tem que ser feito o mais rápido
possível. Está claramente desconfortável por ter sido escalado pela mãe para
esta missão. Afinal, podia ter sido o irmão.
Edna,
professora aposentada, com idade entre 65 e 70 anos, anseia por rever a casa em
que foi tão feliz por tanto tempo com Fábio, comandante, aviador, morto na
década de 80, na “flor da idade”.
Quando Flávio
para o carro, Edna corre para abrir a porta principal e entra na casa,
esquecendo mala, bolsas, e mantimentos para trás. Pacientemente, Flávio segura
o que consegue carregar e entra em seguida.
EDNA
Me deixa
abrir as janelas porque esta casa está com cheiro de mofo. Flávio, Flávio,
chega aqui. Vem ver isso.
(Edna fica imobilizada olhando uma gigantesca
teia de aranha no canto do quarto)
FLÁVIO
O que é,
mãe? Peraí, estou carregado. Esqueceu que deixou tudo para trás?
(Balançando a cabeça, com ar de reprovação, já
um pouco impaciente)
EDNA
Ô, meu
filho, deixa eu te ajudar (aproxima-se de
Flávio para segurar algumas bolsas e depois, leva duas delas para o seu quarto)
FLÁVIO
(Pega um bloco dentro da sua bolsa de couro e
começa o inventário de itens a consertar)
A lareira
está entupida, precisando de uma limpeza... as dobradiças das janelas... o
estofamento do sofá... o assoalho, está meio estofado... há uma goteira aqui...
ih, mãe, acho que essa reforma vai dar pano pra manga (gritando para ela)
EDNA
Eu sei, meu
filho, mas mãe ainda tem algum dinheiro guardado, vai dar para reformar uma
parte. Vou passar um café... quer café, meu filho?
FLÁVIO
Quero, mãe,
vai ajeitando tudo aí, enquanto eu continuo checando as coisas... (esfrega uma mão na outra, puxa a gola da
camisa pra cima, fecha um pouco o casaco) Nossa, como está frio! Diz aí,
mãe, quanto está marcando o termômetro aí na cozinha?
EDNA
(Checando a temperatura no termômetro, como ordenou o filho)
9 graus,
meu filho, 9 graus. Está frio à beça. Se continuar caindo, vamos congelar...
(olhando pela janela melancolicamente)
A grama
também está precisando ser aparada, meu filho. Será que aquele cortador de
grama ainda funciona?
FLÁVIO
(Aproximando-se da cozinha e encostando no
espaldar da porta que a separa da sala)
Vamos ver,
minha mãe, vamos ver... uma coisa de cada vez.
Faz-se
então um silêncio, enquanto Edna arruma o bule e o coador no qual passará o
café fresco. Pega duas canecas. Flávio observa a mãe. De repente, em moto
contínuo, abre a bolsa de couro e pega um maço de cigarros. Puxa um e o acende
cuidadosamente, evitando o vento frio que entra pela janela.
FLÁVIO
(Provocando a mãe)
Quer que eu
acenda um pra você, mãe?
EDNA
(Irritada e nervosa, olhando para ele por
cima do ombro)
Você está
cansado de saber que eu parei de fumar há mais de 20 anos. Para de me ‘tentar,
menino.
FLÁVIO
(Dando de ombros, com uma risadinha no canto da boca)
Não está
mais aqui quem perguntou...
(Virando-se de costas para ela)
Faz-se
outra pausa. Edna então suspira como se fosse fazer a Flávio a pergunta mais
difícil...
EDNA
(Hesitante, mas firme e inquiridora, servindo o café ao filho)
Flávio, me
diga, como você foi capaz de permitir que Lúcia o deixasse, meu filho? Ela era
uma boa mulher, excelente dona de casa, gostava tanto de você...
FLÁVIO
(Surpreso)
Hã? Eu ouvi
direito?
EDNA
Ouviu sim,
meu filho, como você deixou que ela saísse de casa? O que você fez, afinal?
FLÁVIO
(Bufando agitado)
Você não
acha que está se metendo demais na minha vida, mãe? O que a senhora tem a ver
com isso?
EDNA
(Com um ar hipócrita de boazinha)
Tudo, Flávio,
eu também gostava dela e gostava de ver vocês dois juntos.
FLÁVIO
(Dando uma baforada comprida no cigarro)
Engraçado,
mãe, você nunca se importou. Nunca olhou pro seu filho do meio. Eu sempre fui o
enjeitado, o largado, o abandonado da família. Tudo me acontecia e você nem
reparava... (suspiro) por que o
interesse agora?
EDNA
(Contrariada)
Não é
verdade, meu filho, eu sempre olhei por você e seus irmãos. É que eu sempre
trabalhei muito, muito. Tinha que dar de comer pra vocês quando o seu pai saiu
de casa e depois, quando ele morreu. Não desdenhe da minha luta, não faça por
menos...
FLÁVIO
(Respirando fundo e balançando a cabeça, negando
a fala da mãe)
Mãe, você
nunca ligou pra mim e pro Mário. Só o Zeca, que nasceu temporão, merecia
receber sua atenção. Eu e Mário fomos criados a própria sorte. Você está
cansada de saber isso.
EDNA
Que
injustiça!
(Pausa, Flávio dá uma longa tragada no
cigarro e acende outro no que já está fumando, antes que este acabe)
FLÁVIO
(Sério e grave)
Não é, não,
mãe. Você sabe que não é. Quando eu me cortei todo naquela cerca de arame
farpado no sitio do Juca e precisei de várias suturas, você não ficou nem sabendo.
Estava na cama com o seu comandante Fábio. Como sempre.
(Pausa, Flávio recomeça)
Quando caí
dentro do rio e quase me afoguei, quem salvou a minha vida foi o Mário e o Tio Carlos.
Quando o bode me acertou em cheio na perna, você estava com quem? Com papai,
pra variar.
(Pausa, Flávio dá mais um trago e emenda)
Quando caí
daquela árvore, aquela araucária graúda, lembra?, você estava transando com o
Fábio. Você estava sempre com o papai, vocês se trancavam e ficavam horas
incomunicáveis, resolviam tudo na cama... Você...VOCÊ SÓ TINHA OLHOS PRO
PAPAI!!!
EDNA
(Contrariada com a intromissão do filho mimado)
O que VOCÊ
tem com isso? Era a minha vida, eu era a mulher dele. Ele era muito fogoso,
você sabe disso. Gostava de sexo, e eu gostava também. Eu amei muito o seu pai.
Foi por isso que seu casamento acabou? Falta de fogo?
FLÁVIO
(Bem alterado, olhos injetados de raiva,
espalhando fumaça pra todos os lados)
Não é da
sua conta! Nunca foi. Eu sempre fui criado sem mãe. Quer saber mais?
(Pausa, mais um trago longo)
Quando me
pegaram fumando maconha com os amigos, você me deixou uma noite preso. Quando
levei o primeiro fora da Aninha, você não estava lá para enxugar minhas
lágrimas. Você acha que eu gostava?
(Flávio dá uma caminhada em volta da mesa da
cozinha e se aproxima da mãe, falando em seu ouvido, intimidando-a)
Quando reprovei
no Vestibular, nada... quando muito uma reprovação, uma bronca. Você e papai
não estavam nem aí. Mário era o único que olhava por mim.
(Volta-se para a sua cadeira e senta, fitando-a
nos olhos, apagando o cigarro na caneca, só para irritar a mãe)
Eu não
suportei perder o Mário. Não suportei vê-lo morto naquele acidente de avião.
Tudo por culpa do papai, do TEU Fábio, que tinha sempre que se exibir ao
pilotar... Só mais uma manobra arriscada, só mais uma... e deixava todo mundo
nervoso. Naquele dia, não conseguiu reverter e pronto... morreram os dois. E
eu, fiquei duplamente órfão, porque você morreu pra vida também!
(Pausa, Flávio retoma seu ar sarcástico e irônico
e continua...)
E agora
estamos nós aqui planejando a reforma do teu chalé. Você é louca, mamãe. A
Lúcia foi embora porque quis. Pronto. Assunto encerrado. Satisfeita?
Faz-se
outro longo silêncio. Edna enxuga as lágrimas. Flávio acende outro cigarro.
Observa a fumaça, satisfeito com o despejo de verdades sobre a mãe.
EDNA
(com a voz embargada)
É, Flávio,
tua mãe é louca. Uma louca que sempre foi apaixonada pelo marido, acima de
tudo. Uma louca que morreu pra vida. Uma louca que acorda dia sim, dia não,
pensando em como sobreviver sem o meu comandante. Sou louca.
Você é meu
filho largado, enjeitado, o abandonado da família, como você diz. Se é assim
que você sente...
Mas, eu, Flávio,
eu sempre te amei.
Apesar
disso, QUER VOCÊ QUEIRA , QUER NÃO, SOU A PUTA QUE TE PARIU!
--- FADE
OUT ---
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