Rafaela, ou Rafinha
para a família, ia todo dia pra escola sozinha, apesar de ter apenas seis anos.
Sua mãe sempre a criou com muita independência, porque ela tinha que trabalhar
e precisava que seus três filhos cuidassem um dos outros. Os dois mais velhos
estudavam de manhã e Rafinha à tarde. Era impossível para sua mãe ou pai voltar
em casa na hora do almoço para levá-la à escola e como sua escola ficava na
esquina da rua debaixo, Rafinha ia sozinha e voltava com a companhia de algum
amiguinho.
Todos os
dias, quando ia para escola, passava por seu Antônio, que tirava a sesta na
porta de casa. Às vezes, ele não estava dormindo ainda, e via a menina se
aproximar. Nunca falou com ela, porque era um senhor muito tímido, mas ficava
feliz em vê-la, e acabava por ser um pouco o seu anjo da guarda, já que cuidava
do seu caminho por um bom pedaço. Rafinha gostava de ver aquele vovô no caminho
e gostava mais ainda quando ele estava acordado. Ela sempre foi também uma
menina muito tímida, que buscava desde muito pequena por sua privacidade, numa
época da sua vida em que ela não sabia direito nem o que essa palavra
significava.
O tempo foi
passando e Rafinha foi crescendo. Um dia, como seus dois irmãos mais velhos,
ela passou a estudar de manhã, entrando às 7 horas e saindo às 12:30. A
necessidade por solidão foi ficando cada vez maior. O vô Antônio estava sempre
ali, na porta de casa e, com o tempo, eles descobriram seus nomes e passaram a
dizer "Oi", "bom dia" e "boa tarde" quando se
viam. Seu Antônio ficava feliz com os encontros e sempre comentava com Dona
Maria que Rafinha estava ficando uma menina muito bonita, à medida em que
crescia. Pena que não sorria.
Rafinha, uma
garota muito estudiosa e aplicada, era ainda muito tímida. Seus irmãos puxavam
assunto, implicavam com ela, chamavam-na para brincar. Só o que ouviam como
resposta era "Me deixa quieta, eu quero ficar sozinha".
Um dia,
quando sua mãe chegou do trabalho, procurou por Rafinha e não a encontrou.
Chamou, chamou, deu uma olhada na rua, e nada. Perguntou por ela para seus
irmãos e eles não sabiam dela. Entretanto, ela estava ali, no seu quarto, só
que tinha ficado invisível. Rafinha falava, mas ninguém ouvia. Acenava, mas
ninguém via que ela estava acenando. Rafinha os tocava, mas eles não sentiam o
seu toque, nem os seus irmãos, nem seu pai, nem sua mãe. A menina foi ficando
nervosa, tomada por um desespero, o desespero de ser invisível e querer ser
vista. De repente, ela sentiu o quão importante a sua família era para ela.
Sua mãe
buscou ajuda da polícia. Avisou que sua filha havia desaparecido. O policial perguntou
se ela havia sentido falta de alguma peça de roupa. Ela disse que não, apenas a
roupa que ela usava naquele dia. Não faltava mala, nem mochila, nem bolsa de
mão. Rafinha havia deixado seu material da escola, seus livros, e seu estojo de
lápis. A mãe passou a temer que a filha tivesse sido raptada. O policial
conversou com Seu Antônio, que disse ter visto a menina voltar para casa, mas
ninguém foi capaz de dar uma pista que levasse a polícia a desvendar este
mistério.
Como toda
família esperançosa, mantiveram intactos os pertences de Rafinha. Seu lugar à
mesa também estava sempre lá, pois sua mãe pensava que ela poderia entrar pela
porta a qualquer momento. Rafinha sentava à mesa com sua família e tentava
participar da conversa, mas eles não a viam, nem ouviam. Ela sempre pegava um
bife, um pouco de batata e até comia salada para agradar à sua mãe, mas ela não
enxergava nada do que fazia. Era como se os garfos e as facas estivessem ali,
imóveis, como se nada se mexesse enquanto a menina comia. Seu Antônio sempre
perguntava aos pais da menina se tinham alguma notícia. Rafinha até tentou
falar com ele, mas ele também não a viu.
Um dia, ela
começou a perceber que não ia conseguir voltar a ser vista se não bolasse um
plano. Mas, tinha que ser um plano bom, para que surtisse efeito. Rafinha
começou a perceber que quando ela sentia alguma coisa forte, ela piscava uma
luz intensa, que os seus pais viam, mas não entendiam. Então, ela se deu conta
de que o quê importava era sentir, e mais ainda, mostrar o que sentia. Talvez
assim, ela voltasse a ser vista. Durante tanto tempo, só o que ela tinha feito
era tentar ficar sozinha, e esconder seus sentimentos. Quem sabe mostrando-os
para seus pais, ela fosse capaz de reaparecer?
O primeiro a
vê-la foi seu irmão mais velho, o Pedro. Ela viu sua sombra no quarto, e tomou
um susto. Mas, como Pedro era muito corajoso, ele chegou perto da sombra para
ver o que a estava provocando e viu que era a luz da Lua que entrava pela
janela. Ele perguntou: - Quem está aí? E Rafinha, fazendo toda a força do
mundo, disse ao irmão: - Eu te amo meu irmão, eu nunca quis ficar longe de
você. Me ajude a voltar, eu estou aqui. Pedro, surpreso, de ver a irmã, ainda
um pouco transparente, perguntou a ela: - Por que você foi embora? Por que você
fez a gente sofrer deste jeito? Rafinha então tentou se justificar, mas como o
sentimento foi ficando fraco, ela sumiu novamente.
No dia
seguinte, durante o café da manhã, Pedro contou aos seus pais que havia sonhado
com a Rafinha, que ela estava bem, mas que estava próxima a eles, invisível. A
mãe riu com descaso daquela história e disse: - Quem me dera, Deus meu, que
isso fosse verdade!
O tempo foi
passando e Rafinha descobrindo que tinha que sentir com vontade, que precisava
querer ser vista, que tinha que mostrar o que sentia e deixar claro para quem
era querido que ele era querido. E aí ela começou a refletir sobre isso e
pensar em quem tinha real importância em sua vida. Pensou em todo mundo e
pensou no vô Antônio.
Um dia pela
manhã, Rafinha resolveu ir até a casa do vô Antônio para falar com ele. Foi
caminhando e notando a rua. Percebeu coisas que nunca tinha visto, porque
andava sempre muito concentrada, focada em seu mundo interior. Reparou na
plaquinha da Padaria. Viu a arrumação cuidadosa dos jornais da Banca de
Revistas. Mexeu com o gato branco da barbearia. Descobriu que o dono do bar da
esquina tinha um cachorro de pelo preto. Sentiu o calor do sol na sua pele. E
se perguntou como nunca havia percebido tudo isso. Era como se estivesse
ganhando uma nova chance de viver de novo. A medida que ia vendo as coisas, e
reparando nas pessoas, animais, paisagens e sensações, ia ganhando cor. Era
como se estivesse voltando.
Chegou na
porta da casa do vô Antônio, e gritou por ele. Gritou forte. Nada. Depois de
alguns instantes, gritou de novo, a plenos pulmões. Vó Maria então ouviu um
barulho estranho vindo da porta e foi conferir o que era. Ao abri-la, não
enxergou ninguém, mas conseguia ouvir alguns sons estranhos. Ao olhar contra o
sol, viu uma sombra sutil e reconheceu a menina. E começou a conversar com ela.
E ela foi perguntando do vô Antônio, até que a senhora revelou a ela que ele
foi internado na noite em que ela sumiu. Estava hospitalizado desde então.
Ela
perguntou em que hospital vô Antônio estava e foi ao seu encontro. Chegando lá,
vô Antônio estava dormindo em um quarto sozinho. Entrava um solzinho pela
janela, que esquentava o quarto. Ele estava coberto por um lençol azul. O
quarto era muito limpo e silencioso. Rafinha chegou perto dele e segurou docemente
o seu braço. Ele acordou e olhou para ela. Ela então sussurrou: fica bom logo,
vô Antônio. Preciso que o senhor me ajude a voltar a ser visível.
Ele então
olhou bem fundo nos olhos dela e retrucou: ué, Rafinha, mas eu estou te vendo
perfeitamente. Ela correu pro espelho e lá estava, em todas as suas formas.
Vô Antônio
então abriu um sorriso e, em poucos dias, recuperou-se plenamente e voltou pra
casa. Rafinha correu para casa, para os braços dos seus pais. Eles ficaram
surpresos de ver que ela havia crescido, mais do que isso, havia amadurecido,
estava bonita, falante, e, principalmente, valorizava todas as oportunidades de
expor seus sentimentos.
Cresceu, mas
não perdeu a sua doçura. Conversava com os seus irmãos como se fora uma irmã
mais velha. A cada dia, ganhava o respeito dos dois. E sentia-se plena e solar,
consciente do que queria e do que não queria.
Aprendeu a
duras penas a sua lição: a gente precisa ser para fora, mostrar o que sente, para
poder viver intensamente nosso mundo interior.