I
Ele apertou o botão que destravava o segredo do carro, abriu a porta e entrou abruptamente, com pressa. Ela vinha logo atrás e, olhando aquela cena, chegou a desconfiar que ele não fosse esperar por ela. Ao contrário, ele ficou ali, parado, olhando para a chave do carro, esperando ela entrar. Assim que ela entrou no carro e fechou a porta, ele se virou para ela e disse:
- Olha, vamos parar, ‘tá legal?! Eu não quero mais discutir com você! Chega! Está discussão não vai nos levar a lugar algum!
Ela mordeu os lábios e, por segundos, ficou avaliando se valia à pena continuar argumentando com ele. Depois, desistiu. A viagem era relativamente longa, eles iam levar aproximadamente uma hora e trinta minutos para chegar em casa e o clima entre eles não podia estar pior.
- Você sempre arruma um jeito de complicar as coisas! Sempre! Eu te disse que não queria me aborrecer neste passeio! Eu só concordei em vir com você porque me prometeu que ia controlar este seu ciúme doentio. Correu tudo bem, encontramos seus amigos de infância, vimos um monte de gente que eu mal conheço e eu me comportei, não me comportei? Fui simpático com as pessoas, não fui? Você preferia o quê, que eu me isolasse e passasse o encontro inteiro fingindo estar entediado? Só assim eu iria te agradar...
Ela permaneceu calada. No fundo, ele tinha razão. Estava começando a ficar difícil gerenciar a situação. Não argumentou. Não sabia mais como lidar com aquele homem... Ele era lindo, sedutor, encantador...O cara mais bacana da festa...Sempre gentil...Com ela e com todas as mulheres do planeta! Não se sentia culpada por ter explodido, mas também estava cansada de estar sob a sombra daquele homem. Ela que o desejava tanto...Na sua cabeça, ele era um personagem..E o tempo todo ela passava a se perguntar como um homem tão bonito tinha escolhido para sua mulher uma pessoa tão normal, tão comum.
- Você disse que ia se comportar... (blá blá blá).
Ela não ouviu mais nada, nenhuma palavra do que ele dizia. Ficava se perguntando porque o comportamento dela o incomodava tanto e o dele não podia incomodá-la. Chegava a pensar que era pelo favor que ele fazia de estar com ela. Talvez esse fosse um assunto para discutir com o terapeuta. O fato de que ela era insegura demais e os fatos recentes só demonstravam isso e pioravam a situação entre eles.
Ele falou por mais de meia hora. Quando percebeu que era em vão, que ela havia desligado e não o estava ouvindo, calou-se também. Ficaram os dois em silêncio, ouvindo o rádio:
“I don’t mind spending everyday out on your corner in the pouring rain, looking for the girl with the broken smile, ask her if she wants to stay awhile, and she will be loved...”
De repente, ela se virou para ele e disse:
- Eu te amo, meu amor! ‘Tá?
Ele se sentiu meio que desmontado. Num primeiro momento, sorriu com o canto esquerdo da boca. Depois, foi se sentindo mais descontraído até que começou a gargalhar. Ela riu com ele daquela situação. Por que estavam mesmo brigando?
II
Ele sabia que agia como um Don Juan, era viciado nisso. Não deixava passar um rabo de saia sem um comentário, um elogio. Até que ela havia sido bastante tolerante por todos esses anos. Mas, de um tempo para cá, começou a explodir em ciúmes. Parecia estar perdendo a confiança nele. O que estaria causando aquela transformação?
Depois da gargalhada, ele voltou a ficar em silêncio, pensando qual a causa de tanta insegurança por parte de sua mulher. Afinal, ele não estava fazendo nada que fosse diferente do que sempre fizera: continuava tratando as mulheres como se fossem amantes potenciais. Mas, nunca avançava o sinal.
A Maria Luíza, a sua Malú, era uma mulher de beleza mediana, possuía um olhar bem forte, cabelos negros, e tinha um corpo bem interessante, daqueles que transbordam exuberância. Mas, não era de se enfeitar muito. Da época em que haviam sido namorados, aos dias de hoje, ela foi perdendo o hábito de usar jóias, ou roupas mais sofisticadas e passou a optar pelo conforto, o que, de certa forma, escondia as suas belas formas.
Ele a via todos os dias, estava mais do que acostumado. Já se haviam passado onze anos de casamento. Mas, apesar de se sentir sempre impelido a testar seu poder de sedução, ele nunca a havia traído. Não tinha coragem, pois sabia que era um caminho sem volta. Só que gostava demais de flertar. Flertava com as colegas de trabalho, com as amigas, com as amigas de sua esposa, com ex-namoradas. Ele se sentia muito perdido às vezes, ainda mais porque quanto mais ele flertava, mais a sua esposa se distanciava dele, apesar de sempre dizer que o amava e o desejava muito.
III
O telefone celular dela tocou três vezes, depois parou. Quinze minutos depois, tocou novamente mais três vezes. Parou novamente. Ela não atendeu. Ele se virou para ele e perguntou:
- O que foi? Por que você não atende? Algum problema?
Ela, meio nervosa, respondeu:
- Nada, nenhum problema, com a voz trêmula. É que é alguém lá da festa, e eu não quero atender.
- Atende, podem estar querendo nos avisar de algo que nos esquecemos! Aliás, você não esqueceu nada lá, esqueceu? Eu não gostaria de ter que voltar todo este pedaço de estrada que já percorremos!
- Não, eu não esqueci coisa alguma. Não estou a fim de atender. Deve ser incomodação. Depois eu ligo para a Marina e vejo o que era...
De repente, o telefone começou a tocar novamente. No segundo toque, ele passou a mão no aparelho, viu que era outro número, e não o da casa da Marina, e o atendeu.
- Alô? Quem é? Diga lá...
Cuidava para dirigir e falar ao telefone ao mesmo tempo, coisa que não gostava de fazer. Achou melhor parar o carro no acostamento e ligar o pisca-alerta. Mas, ninguém falou nada do outro lado. Ele achou estranho e desligou. Virou-se para Malú e disse, em tom enfático:
- Por que é que eu tenho a sensação de que você sabia quem era? E por que a pessoa do outro lado ficou muda quando atendi?
Estas perguntas pareceram ecoar dentro do carro...Malú não conseguiu responder, apenas abaixou a cabeça e murmurou:
- Vamos continuar esta viagem, por favor. Estou louca para chegar logo na minha casa.
Ele ligou o carro e retornou à estrada, encafifado. Havia algo que Malú não queria lhe contar. Teria acontecido na festa? Teria sido algo sério? Será que ela havia se aborrecido com alguém além dele próprio? Estes pensamentos pareceram invadir-lhe a cabeça e ele ficou matutando sobre eles por um longo trecho da viagem.
IV
Faltando uns quinze minutos para chegarem ao pedágio, viram um carro enguiçado no acostamento e Roberto resolveu reduzir a velocidade para ver se era algum conhecido. Passou devagar pelo carro, olhando para o sujeito que estava ao telefone, talvez pedindo socorro, e viu que era Lauro, um dos amigos de Malú e Marina. Olhou para a esposa, que continuava olhando para baixo, e disse:
- É o Lauro! Vamos parar para ver se ele precisa de alguma ajuda? Vamos, ele está sozinho!
E foi encostando o carro à frente do dele. Malú ficou paralisada, não sabia o que fazer.
- Oi, Lauro, posso te ajudar? Está enguiçado?
- Oi, Roberto, valeu, cara! Mas, na verdade, acho que furou um pneu, o carro começou a apresentar uma certa instabilidade e eu parei para verificar. Aproveitei para dar um telefonema! Não tem grilo, não, cara! Deixa que eu troco isso rapidinho! Segue a sua viagem que ainda falta muito.
Malú nem chegou a descer do carro. Ficou lá, sentada, sem ação. Não olhou para o Lauro.
- Faz uma coisa, Lauro, me deixa aqui anotado o seu telefone que quando eu passar pelo pedágio, aviso à Concessionária que administra a estrada e eles vêm te ajudar com este pneu. Falta muito pouco para chegarmos ao pedágio...
E foi logo pegando o bloco que ficava no porta-luvas e dando para o Lauro anotar o telefone. Quando entrou no carro, entregou o bloco para a Malú, que ficou ali, quieta, torcendo para que a memória de Roberto fosse curta.
V
Quando chegaram ao pedágio, Roberto tratou de procurar por um encarregado e avisar do problema do amigo, para que o mesmo fosse socorrido. Sacou o bloco e ditou o número para o homem, que já estava acionando a equipe de resgate. Afinal, era para isso que eles pagavam um pedágio tão caro na ida e na volta.
Ao entrar no carro, se deu em conta de que aquele era o número que havia ligado para o telefone de Malú. Olhou para ela, tão pálida, tão emudecida, e entendeu que o feitiço havia virado contra o feiticeiro. Leu em seu rosto que havia rolado uma traição. Há quanto tempo estava se encontrando com o Lauro? Como isso tinha acontecido? Como uma mulher que o ama tanto era capaz de o trair? Ele nunca havia conseguido, mas estava sendo traído bem ali, embaixo do seu nariz! Ele não conseguiu perguntar nada a Malú. Dirigiu até em casa pensando em fazer uma pequena mala e buscar um hotel, para se dar um tempo para refletir a respeito. Havia tirado suas próprias conclusões, já que a conhecia demais.
VI
(...)
Chegaram na festa e viram que o pessoal já estava meio alcoolizado. Decidiram beber também e curtir o clima agradável do reencontro. Muitos amigos de Malú haviam comparecido, alguns acompanhados, outros sozinhos, por já estarem separados. Roberto, como de costume, jogou charme para todo mundo. Em meia hora, ficou rodeado de mulheres, até de Marina, a dona da casa.
Malú, sua esposa, ficava olhando de longe, apreciando sua habilidade com as mulheres, vendo como aquele garanhão continuava com as garras afiadas e o charme a toda prova. Sem perceber a aproximação, Malú se deparou com Lauro, um homem por quem havia sido apaixonada na época do colégio. O coração dela disparou. Por que? Seria só pelas lembranças da adolescência?
- Malú, que saudade?! Nossa, que cheiro bom! Que perfume é esse? Sempre adorei o seu cheiro, sabia?
O papo foi rolando, e Roberto nem percebeu o assédio a sua esposa, já que estava tão entretido em manter a sua fama de Don Juan. Malú, que há muito tempo estava com a moral baixa, começou a se encantar com a conversa e, depois de muito prosecco e de canapés deliciosos, Lauro a convidou para subir. Ela embarcou naquela onda, sem pensar muito nas conseqüências, e quando se deu em conta, já havia rolado uma transa rápida.
Sua primeira vez, depois de muito tempo, com outro homem. Lauro não era um desconhecido, mas, dele não se podia dizer que se sabia muito. Incrivelmente, ela não se arrependeu de pronto, sentiu-se até vingada. Mas, com toda a calma do mundo, virou-se para Lauro e avisou:
- Lauro, olha só, eu sou uma mulher muito bem casada e não pretendo levar isto a diante. Esquece! Não vamos nem nos lembrar que isso aconteceu. Não vale à pena!
Ao contrário do que Malú imaginava ouvir, Lauro respondeu:
- Vamos conversar isso depois. Eu peguei seu telefone com a Marina. Vou te ligar. Quero marcar para conversarmos. Esta conversa a gente não pode ter aqui. Eu quero você desde o colégio, quando você era uma garota boba, que não entendia os sinais. Não vou desistir assim tão rápido. Agora, é melhor que eu desça, antes que dêem por nossa falta.
Malú sentiu o clima pesado. E aí, começou a se arrepender. Quando finalmente conseguiu se arrumar para descer, Marina entrou no quarto e lhe perguntou:
- O que você fez, sua louca? ‘Tá maluca? Quer acabar com o seu casamento? Esse Lauro é doido de pedra! Ele vive me perguntando sobre você ... E você caiu na conversa dele direitinho. O que foi isso?
- Raiva, foi pura raiva do Roberto, desta necessidade de flertar com todo mundo. Estou de saco cheio. Não agüento mais este comportamento. Foi só uma transa de nada...amanhã já esqueci.
- Malú, você arrumou encrenca, pode esperar. O cara é doido! Agora, vamos descer. Daqui a pouco o Roberto percebe sua ausência.
Malú desceu as escadas e viu Roberto conversando com Paula, uma mulher que havia sido a pedra no seu sapato por muitos anos na escola. Teve um ataque, puxou Roberto pelo braço, começou a reclamar e resolveu que era hora de sair. Deu uma olhada pela sala e nem sinal de Lauro. Melhor assim.
- Vamos embora, Roberto! Pra mim, já deu!
VII
Roberto entrou em casa e foi até o banheiro. Trancou a porta. Malú soube, então, que ele havia percebido que era o mesmo número: o que ficou registrado no celular dela e o que Lauro anotou no bloco. Bateu na porta e pediu para ele abrir:
- Roberto, abre, quero falar com você! Abre, anda!
Roberto ficou se perguntando como conseguiu completar a viagem, como teve sangue frio para dirigir e controlar a vontade de jogar o carro contra um poste para acabar com aquilo de uma vez.
- Malú, por favor, me deixa quieto. Eu não quero falar com você agora! Depois você me explica o que aconteceu!
- Roberto, meu amor, esse Lauro é maluco! Ele fez de propósito, você não entende!?
Malú era advogada, era muito boa com as palavras e estava descobrindo que era excelente atriz.
- Esse cara me disse na festa que tinha sido apaixonado por mim na escola e que tinha pego o meu telefone com a Marina, que queria conversar comigo. Eu só não atendi porque não queria dar trela para doido. Vamos, meu amor, eu já te disse, eu te amo!
Roberto, então, achou que a história fazia sentido e abriu a porta. A mulher o esperava do lado de fora, seminua, de calcinha e sutiã novos, rendados, com a cara mais indecente do mundo. Roberto a abraçou... sentiu ainda um cheiro diferente na mulher, algo meio parecido com pecado. Mas, preferiu aproveitar aquele momento.
Malú nunca foi tão boa na cama como aquele dia, agiu como uma gueixa, realizou todos os desejos do marido. E ao final do amor, ele dormiu como um garoto.
E ela foi até a varanda, acendeu um cigarro e riu.
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