As coisas estavam mudadas. Era como se a Terra tivesse levado dois anos para dar a volta ao redor do Sol. O tempo estava meio congelado, lento, devagar.
Durante esse período, ela sofrera com as mudanças inconstantes das marés, alterando sua regulação hormonal. Esteve duas vezes muito próxima do outro lado: como o bêbado que entrega a sua vida ao desequilíbrio no parapeito do terraço no alto do edifício, ela entregara a sua ao mesmo anestesista, fornecendo-lhe uma aura mística que ele não pedira, mas insistindo em debater-se como alguém que é quase um "herói da resistência".
Se em momentos de maré alta, ela fortaleceu-se, revelando-se uma mulher guerreira e corajosa, nos de maré baixa, ela surpreendeu-se e quase entregou os pontos. Entretanto, agora ela sabia que a grande onda estava de volta, feito tsunami, a devastar com a sua energia o que encontrasse pela frente.
Parte de um oceano sem memória, mas imponente e inebriante, a onda dificilmente a reconheceria. Não se lembraria que havia passado por ela há dois anos e levado tudo que ela possuía, deixando-a viva para assistir à reconstrução do mundo. Ela se perguntava se seria poupada, se a ela seria concedido o direito de sobreviver à onda, a chance de ver o desastre e ser imune a ele novamente. Se, ao menos, sofreria menos ao ver a morte alheia.
Ela sabia que o medo paralisa, mas, como dizia Vinicius, era preferível viver que ser feliz. O ritual era sempre o mesmo, havia um toque de sedução no ar, um cortejo, como que se fosse a preparação para aquela iniciação. A onda era tão forte, tão poderosa, ao mesmo tempo devastava, mas deixava saudade. Ela sentia arder dentro de si a energia. Como se pedisse a sua volta.
O dia da grande onda estava quase chegando. Só ela, como uma das pouco sobreviventes, havia recebido os sinais, havia sentido sua presença. De repente, a lua cheia se firmou no céu, deixando a todos mais sensíveis e abertos às mudanças, criando um clima de quase devoção àquela luz. No horizonte, só se podia ver a retração do mar.
Ela parou em frente à praia e abriu os braços. A brisa da noite enluarada envolveu-lhe o corpo. Pisou a areia úmida e esperou.
E, em segundos, em pleno janeiro de Capricórnio, sem medo, sem dor, sem razão, ela que sempre sonhou com o mar, olhando para aquele paredão de água salgada, entendeu o mistério da vida...
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