I
Mais um dia normal como qualquer outro estava para começar. Ela se levantou calmamente, sentou-se na cama, esticou os braços para espreguiçar-se e procurou por seus chinelos. "Onde foi que eu os deixei ontem, meu Deus?". Foi descalça até o banheiro então, após dar uma olhada em volta da cama, sem encontrá-los.
Ao se olhar no espelho, pensou que, finalmente, depois de muitos meses, já não se via tão abatida, tão cansada, tão envelhecida. Não sabia exatamente quando aquela sensação de exaustão havia passado, mas agora ela não tinha medo do espelho como outrora.
Escovou os dentes, tirou o pijama, abriu o chuveiro e deixou que a ducha caísse suavemente pelo chão do box, para esquentar a água e encher de vapor aquele pequeno cômodo que os arquitetos um dia chamaram de quarto de banho. "Tão apertado, meu Deus!" No quarto de banho, não havia luz. Ela não havia pago a conta. "Tudo bem, amanhã eu pago! Eu resolvo isso!" Acendeu um toco de vela e com ela, iluminou uma fresta do cômodo, o suficiente para ter um raio de luz e alguma sombra, de forma a guiá-la em sua tarefa, já que não havia uma janela, só um exaustor que puxava o ar quente para o prisma de ventilação.
Depois de alguns minutos, abriu a pequena porta de vidro e entrou no box, para sentir o calor da água. Precisava relaxar. Deixou que a água batesse forte em sua nuca, nas costas, em seu dorso...o calor foi aliviando todas as tensões e dores do dia anterior que teimaram em resistir ao sono. A água escorria por seus cabelos, agora tão cumpridos e chegava aos seus pés pequenos(sempre achou que seus pés eram pequenos se comparados à sua altura). Curtiu aquele momento.
Ensaboando-se de olhos fechados, como se conduzisse uma experiência muito particular, pôde sentir seu corpo, suas dobras, seus montes, suas cavernas, braços e pernas, cabelos e pêlos, rosto, pele. No escuro, tudo tão bonito e cor de âmbar. Tudo tão vivo e pleno de desejo. Sentia o prazer do banho, de passar as mãos ensaboadas pelo seu corpo, tocando cada parte com a suavidade com que gostaria de ser tocada. Aquele era um momento só seu, e ela tinha que aproveitar cada minuto. Havia muito tempo que ela não se sentia tão viva.
Estava sozinha, como se há muito já não estivera. Mas estava realmente sozinha. Com tempo para pensar, refletir, sonhar, planejar. O tempo agora parecia ser muito. Todos os dias, o tempo era só seu. Tempo para se curtir, tempo para se conhecer, tempo para entender os seus desejos. De uma hora para a outra, começou a se perceber falando com Deus...muitas vezes ao dia, chamando por Ele e questionando suas ações e sua existência, como se estivesse em constante processo de meditação e reflexão.
Não tinha mais medo da noite. Não tinha mais a noite companheira insone. Agora, dormia bem. Sonhava com os anjos. Quando chegava em casa, que apesar de modesta era só sua, encontrava tudo do jeito que havia deixado, sem interferências. Valorizava o seu trabalho. Não precisava mais de licença para ser feliz. Podia chorar, sem que fosse escondido, podia rir do que quisesse, podia escolher com quem estar. Liberdade...
II
Aquelas escolhas tinham sido difíceis. Mudar tudo exigiu dela muito planejamento, muita tomada de decisão. Ela teve que descobrir o que queria, como pensar sozinha, temendo fazer as piores escolhas, mas certa de que aquele relacionamento estava por esgotar-se, e que o futuro que se podia vislumbrar era terrível.
Agora, quando olhava para as paredes de sua casa, não as encarava mais como as grades de seu cárcere. Não temia mais ter que conversar com elas, não se via mais tolerando um ambiente tão desarrumado e hostil. Ela mesmo tinha se tornado uma relaxada. Não tinha mais prazer em cuidar de nada. E agora, tinha a chance da felicidade. Sozinha ou com qualquer um.
Está certo que teve que enfrentar resistências de todos os lados. Da família, dos amigos, do próprio marido. Ninguém queria que ela partisse neste vôo cego. Achavam muito arriscado. Mas o que é a vida senão um grande jogo arriscado? Às vezes a gente perde, noutras, ganha. É a roda da fortuna.
III
Ela teve muito medo...medos de todos os tipos a assombraram.
Medo de deixar seu marido sozinho e ter que arcar com as consequências de seus atos..."Eu não sou mãe dele, meu Deus, por que sinto tanta culpa pelo que ele faz?"
Medo de ter que aprender a dizer: "Eu quero, eu posso"... Lembrou das várias vezes em que, estudando História com seu pai, teimou em repetir que não conseguia entender ou decorar o tópico e ouviu novamente as suas palavras: "Nunca diga que não consegue...você consegue tudo que quiser...basta querer!" E ficou mais uma vez feliz em saber que havia aprendido aquilo com seu pai.
Medo de ter que sair em busca da felicidade, já que tinha ficado esperando ela bater à sua porta por tanto tempo. Aquela postura tinha se transformado em inércia, em imobilidade. Era como se ela não soubesse mais se merecia se feliz, depois de tudo que havia passado.
Medo de não ter mais chance de ser mãe. Aquele era um medo maior. Mas, durante algum tempo ela chegou a ter medo de por no mundo um filho para carregar tanta tristeza, para ver as ações degradantes de um pai que sofria e estravazava na bebida, fazendo com que todos a sua volta sofressem, como num círculo vicioso. Quanto mais ela reclamava que não queria mais sofrer, mais ele se entregava ao vício e insistia em dizer a todos que aquilo não era doença, que ele o fazia de forma consciente. Se era consciente, era ainda mais cruel.
Medo de ser feliz, por fim. "Como lidar com a culpa de ganhar outra chance de ser feliz, se quem ela gostava estava tão mal? Deus, será que eu não posso deixar o passado para trás?"
IV
Era tudo diferente, finalmente. Não precisava mais se esconder atrás de um estereótipo. O estereótipo de mulher séria. Começou a mudar lentamente. Voltou a praticar exercícios físicos, e a ter vondade de se cuidar. Tinha tempo para isso.
Mudou de tudo um pouco, à medida que ia se transformando por dentro. Pintou os cabelos de ruivo então. Seu marido sempre disse que não achava que ia ficar legal, e para não desagradá-lo, ela os mantinha na cor natural. Mas os fios brancos eram uma das razões pelas quais ela se sentia mais velha do que realmente era. Passou a cuidar de suas unhas e a usar tons da moda, mais fortes, abandonando o branquinho habitual e tão desbotado, tão apagado.
Trocou as roupas, comprou roupas mais modernas. Passou a usar vestidos, que a tornavam bem feminina.
V
Aquietou-se. No trabalho, todos perceberam a mudança. Achavam que ela tinha um novo homem em sua vida. "Por que não podemos mudar por nós mesmos? Por que tem sempre que haver alguém na estória?"
Ela estava diferente, tinha um brilho diferente no olhar. Sim, um outro homem havia até começado aquilo tudo, mas o que ela sentiu por ele nunca chegou a se concretizar. Ela nunca disse para ele, ele não era para ela. Mas, ele foi responsável por tirá-la do lugar, por colocá-la em movimento. "Pedra que não anda, cria limo!"
Ela havia sonhado muito com aquele homem e desejado muito vê-lo feliz. Mas, quis o destino que não fosse com ela. E não foi.
VI
Hoje, ela estava ali. Saindo do banho. Sã e salva. Poderosa. Plena de si mesma.
Já falava mais dois idiomas. Fazia curso de decoração nas horas vagas.
Frequentava com os amigos o Clube dos Democráticos, na Lapa, para bailar. Havia aprendido a dançar. E se descobriu leve como uma pluma.
Trabalhava com crianças agora e, ao invés de um filho, havia ganho vários, postiços!
A felicidade teve um preço. Ela não se arrependeu de tê-lo pago...
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