Quem é essa senhora sentada à beira da minha cama, aos meus pés? Por que ela me olha com tanta pena, tão desolada? Aliás, por que está todo mundo me olhando assim tão preocupado?
Ele já estava naquela cama há muito tempo, emagrecendo um pouco todos os dias, assustando filhos e netos com a rapidez com que progredia a sua doença. Conviver com ela era difícil, lidar com as metástases, então, não era nada fácil. Quando o médico chamou a família para conversar da última vez, foi para dizer que a doença havia provocado um tipo de esclerose que o levaria a esquecer pouco a pouco dos mais próximos, lembrando apenas de breves "flashes" da sua vida... e isso, todo mundo já tinha percebido.
Agora chegaram estes meninos...quem são eles? Dois meninos, agora mais duas meninas... hum, bonitas estas crianças...quem serão?...agora mais um menino e uma menina...Nossa, quantos beijos!!! Eles me beijam e abraçam com carinho...que gostoso!
- Vovô, oi, vovô! Como você está hoje? Lembra de mim, vovô?
Ele não lembrava. Que menina bonita, tão magrinha, cabelo castanho...será que ela estuda aqui na minha escola? Mas, peraí, ela está me chamando de vovô!!! Como assim? Eu ainda estou na escola!! Ei, cadê a minha professora? A aula já vai começar...!!! Estou tão cansado estes dias...
Seus três filhos (duas gêmeas e um mais novo) entravam e saíam do quarto à toda hora, cochichando pelos cantos da casa, preocupados com os pais, sem sorrisos, num quase-silêncio comovente...
- Mamãe, o vovô está melhorando? Ele vai ficar bom?, perguntou uma das crianças.
Como que sem uma resposta boa para dar ao filho, a mãe optou pelo emudecimento, porque ela não teria como lhe explicar que a cura para aquela doença ainda demoraria muito a ser descoberta. Ah, mais como ela queria que esta cura chegasse bem rápido!!! Olhava para o pai e lembrava da farra que fazia com os netos. Com eles, fôra um deseducador, desfazendo todo o trabalho que os pais tinham com criação das crianças. Eles o respeitavam muito, apesar da bagunça constante.
Nas suas brincadeiras favoritas, alguém sempre terminava pulando sobre o colchão de molas da cama do casal - às vezes, os seis netos juntos. Eram três meninas e três meninos que, com ele, brincavam, num único grupo, sem a distinção comum que se fazia entre os jogos de meninas e de meninos naquela época. Com aquele avô, eles aprenderam a gostar dos bichos, em especial dos passarinhos e dos gatos (negros). O 'vovô' levava as crianças para brincar soltas nos terrenos baldios vizinhos ao seu condomínio. E eles sempre voltavam imundos para casa. Soltavam pipas, jogavam peão e bola de gude, "fumavam" imensos charutos feitos de jornal (sem tragar, é claro!). E viam o povo soltar balões enormes nas festas juninas do bairro. Naquela época, não se tinha idéia do perigo que aquilo representava para matas, casas e florestas. Os enormes balões iluminados por milhares de "lanterninhas" japonesas eram mesmo a sensação das festas. Tinha milho, maçã do amor, algodão doce... e o vovô tratava de abastecer a todo mundo.
Mais ainda havia o mais divertido: vovô deixava que as crianças o penteassem em troca de algumas moedas. E elas adoravam deixá-lo parecido com o Einstein, aquele sujeito esperto que inventou a tal "Lei da Relatividade". E, como na vida, tudo é relativo, quem olhasse para o vovô, acharia que ele era louco, louquinho de pedra!
A filha lembrou também do amor de seu pai pelas fotografias. Na parede da sala, pendurou nove quadros enormes, com as fotos dos três filhos e dos seis netos. Ele mesmo tratava de fazer os quadros, adorava lidar com molduras e furar paredes.
Foi a última vez que os netos viram e abraçaram o avô, naquele domingo de 1982. Ele se foi, mas estava em casa, como queria. Lembrava apenas da sua professora do primário, que, para ele, àquela altura, era a vovó. Resignada, ela entendeu que não só o vovô ia descansar daquilo tudo... ela também.
E os netos...eles nunca mais se divertiram como naqueles tempos! Saudades do vovô!
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Para o meu avô querido, Paulo Mendes Borba.
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