“Você teria trocado seis por meia dúzia”. Ela ouviu a sentença, atônita, e limitou-se a dizer a ele que não sabia a que assunto ele estava se referindo. Marina saiu do escritório no final da tarde e dirigiu-se para a estação de metrô mais próxima. Lembrou-se que não tinha mais crédito no seu cartão de metrô e pensou no tamanho da fila que teria que enfrentar naquele horário. Odiava andar de metrô. Ter que olhar para todas aquelas pessoas, sem a opção da paisagem pela janela era, em alguns momentos, muito constrangedor.
A frase de Murilo, seu melhor amigo ficou martelando na sua cabeça durante toda a tarde. Tinha se arrependido de ter ido almoçar com ele, pois preferia não ter ouvido nada daquilo e ter ficado com a dúvida. “Ao que ele estava se referindo? O que ele sabia que eu não sei? Já faz tanto tempo, já mudou tanta coisa, por que ele está desenterrando isso?” Ela estava chateada por não ter tido a coragem de perguntar, porque ficou no vácuo mais uma vez, porque sabia que aquele olhar queria dizer alguma coisa, ela só não sabia bem o quê. E ela odiava ficar no vácuo, odiava aquele medo de perguntar as coisas, de se expor. Ficava com um gosto amargo de uma situação na qual a pessoa parecia ter um controle sobre ela, como se conhecesse algum segredo dela, como se a tivesse nas mãos. E ela sabia que Murilo estava falando dele, do Gustavo, um amigo em comum que eles tinham e do amor que ela um dia sentiu por este amigo, um amor que, a custa de muito sacrifício, muita dor, tinha feito de tudo para esquecer, para apagar, para tirar do peito.
Foram anos difíceis aqueles. Anos de distância e proximidade. De saudade e de muito
contato. De uma cumplicidade inexplicável entre os dois, na sombra, no escuro às vezes, sem alarde, para que ninguém soubesse. Tinham muito a perder. Afinal, nem eles mesmos sabiam o que seria de suas vidas.
Mas durante todo esse tempo em que estiveram próximos, acharam que ninguém sabia de
nada, que ninguém percebia o quanto gostavam um do outro. Estavam muito velhos para viver amores platônicos e ninguém, mas ninguém mesmo, acreditaria nisso, que não havia acontecido nada de concreto entre eles. É por isso, por toda essa paixão que ela obrigou a permanecer no passado, que ela considerava aquela sentença muito injusta, pois quem não se permite experimentar, quem não se permite viver um amor, não tem chance de mudar sua história, de se reescrever, de recontar sua vida, de mudar de rota e tentar ser feliz.
Já se iam dez anos desde a última vez que ela vira Gustavo. O destino, esse trapaceiro, fez com que eles não mais se encontrassem, mesmo trabalhando tão próximos. Ela era agora uma mulher de 45 anos, vivida, alguns cabelos brancos e marcas do tempo no rosto, insistindo em mostrar a ela que ele, o tempo, havia passado correndo. Pelas suas contas, ele estaria com 55 anos e só: sobre ele, não sabia mais nada. Nunca tivera coragem de perguntar aos mais chegados, com medo que eles tivessem certeza do que ela um dia sentiu. Certeza, sim, porque, como ela pôde perceber naquele almoço, muitos desconfiavam deles, do que sentiam um pelo outro, do que viveram... daquele amor todo...
Chance de vivê-lo, eles tiveram uma vez. Gustavo era conhecido por emendar um casamento no outro. Um dia, recém separado, ele perguntou a ela o que pretendia fazer da sua vida. Convidou-a para passar uns dias com ele, para viajarem juntos. Ela não foi. Nunca falaram a respeito depois. Ele era do tipo que fazia o convite e se a resposta positiva não viesse de imediato, ele se arrependia e mudava de assunto, como se nunca tivesse proposto nada. Ela se sentia muito insegura com esse jeito dele, era como estar o tempo todo na corda bamba. Por isso ela não foi. Isso foi há doze anos. Dois anos depois, eles se reencontraram e Gustavo disse a Marina que havia se casado novamente.
Agora, uma sentença cruel havia trazido para Marina tudo de volta, como se ela tivesse sido a mulher mais incompetente ao jogar tudo aquilo para debaixo do tapete. Os 20 minutos naquele trem custaram a passar. Deu tempo para ver o filme dos últimos dez anos passar na sua frente, como se não houvesse pessoa alguma ali. Chegando em casa, reparou como tudo estava no mesmo lugar que ela havia deixado quando saiu pela manhã. Mais uma vez, lá estava ela e sua imensa covardia sozinhas naquele apartamento vazio. Marina esquentou um pouco d’água, preparou um chá com torradas e levou para o seu quarto, de onde não pretendia mais sair até o amanhecer. Abriu um pequeno envelope com algumas fotos velhas e amareladas e, por alguns minutos, ficou a admirar um sorriso franco de um homem de braços abertos que nunca foi seu.
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