sábado, janeiro 14, 2006

Sangue sem Cristal

Este conto é uma contribuição de uma grande amiga minha.
Espero que vocês gostem.
Beijos,
Rebecca


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Sinto-me cego. Tateando. Pelo resto da vida tateando, nesta cela com cheiro acre. As grades já fazem parte do meu corpo, impressas que estão nele. A dor já não é mais dor. Apenas rasga a solidão como a única coisa que posso tocar neste frio de cela. Selado como carta que ninguém quer ler.

Estava estudando como em qualquer das infinitas tardes com o computador. A data da defesa da tese se aproximando. Ela se preparava para sair, cada vez mais linda com a gravidez, olhos sol e barriga a pino. Descobriu esse casal de amigos e eu me sentia seguro. Parecia que com eles ela estava protegida. Jamais entenderia essa ânsia de novos passeios que ela exalava cada vez que se preparava para sair com eles.

Caminhando pela cela percebo a sofreguidão das paredes desenhadas. Não me espanto mais ao tocá-las. São minhas propriedades, meus objetos de estudo agora. O colchão puído e cheirando a mijo complementa o sentido da prisão: excrementos humanos. É isso que nos tornamos aqui dentro, restos.

Havia notado um brilho diferente, novo nos olhos dela. Achava que a amizade do casal mais a maternidade a estavam fazendo bem. Parecia feliz, não me cobrava comportamentos que não sou capaz de ter. Anti-social. Mergulhado no meu aquário, trabalhava e a encorajava a passear, já que com o bebê ficaria mais difícil. Naquela tarde iriam à praia, aproveitar o verão.

Risco a parede com a tinta que sai dos meus dedos vermelhos, sangrando de arrancar frases obscenas em lascas. Escrevo o nome dela com paixão que jamais imaginei: Mara, Mara, Mara. Interminável esta ladainha. Como será minha filha? Mil vezes me perguntei, sem resposta. Como ela se parece, qual o seu nome, onde o espaço vazio de mim onde ela mora? Pedaços de mim caem pelo chão fétido da prisão.

Estava no computador escrevendo as últimas linhas quando a campainha tocou frenética, acompanhada de chutes. Era a amiga dela, transtornada, chorando e cuspindo frases confusas na minha cara. Não eram frases, eram espadas.

Há cicatrizes que nunca fecham, Meus dedos não são mais dedos, são sal. As lágrimas tornaram-se um difícil ponto final. Agora, só as reticências dos eternos sangramentos daquelas espadas que me lançaram. Posso sentir o final próximo, minha alma vagando pela cela enquanto meu corpo permanece estirado no colchão úmido.

Cuspindo cada vez mais em minha face, a mulher dizia coisas que me deixavam confuso. Podia apreender apenas algumas palavras. Grávida. Adúltera. Traiu você. Meu marido. Fim. Traiu. Traiu. TRAIU... Levei tempo para encaixar as peças. Quando pude compreender o significado daquele espetáculo, senti que deixaria de ser espectador para atuar no palco da traição de minha mulher. Notei que jamais entenderia o por quê. Quando pude me mover novamente, a atiradora já tinha ido e apenas a traidora me olhava assustada, mãos na barriga de seis meses de gravidez. Pavor em seus olhos. Vazio nos meus. Não disse nada. Não fiz nada. Apenas caminhei para a janela. Queria ver o mar, e nele o reflexo dos olhos dela já pareciam remotos e inconstantes. Com gosto de sal na boca pude perceber o desespero dela atrás de mim, quando novamente a campainha tocou.

Já não consigo mais catar meus pedaços pelo chão. Minha alma já não me obedece mais nesta necessária reclusão. Grades por todos os lados. Sangue. O cheiro agora é insuportável. O cheiro sobre os meus ombros sugere uma cruz. Começo a rezar.

Ele invadiu o apartamento dizendo que levaria minha mulher com ele. De repente tive a exata noção do que sou: um animal acuado que, inesperadamente decide reagir. Parti para cima de minha presa com garras jamais pensadas. Pela minha filha, pela minha mulher, pelo homem que nunca fui. Cuspi nele as mesmas espadas que estavam cravadas em mim. Cuspi não, enterrei. Em seus olhos e peito e pernas e sexo, enterrei. O sangue escorreu pela sala junto com as lágrimas de Mara e a bolsa d’água rompida por mim.

Obedecendo à reza, minha alma retorna. Não posso pedir perdão - já não há perdão. Não sou o homem que sou. O sangue escorre pelas grades enquanto os guardas se movimentam naquele fim de tarde de verão.

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