sábado, junho 24, 2006

Escolhas...

I

Mais um dia normal como qualquer outro estava para começar. Ela se levantou calmamente, sentou-se na cama, esticou os braços para espreguiçar-se e procurou por seus chinelos. "Onde foi que eu os deixei ontem, meu Deus?". Foi descalça até o banheiro então, após dar uma olhada em volta da cama, sem encontrá-los.

Ao se olhar no espelho, pensou que, finalmente, depois de muitos meses, já não se via tão abatida, tão cansada, tão envelhecida. Não sabia exatamente quando aquela sensação de exaustão havia passado, mas agora ela não tinha medo do espelho como outrora.

Escovou os dentes, tirou o pijama, abriu o chuveiro e deixou que a ducha caísse suavemente pelo chão do box, para esquentar a água e encher de vapor aquele pequeno cômodo que os arquitetos um dia chamaram de quarto de banho. "Tão apertado, meu Deus!" No quarto de banho, não havia luz. Ela não havia pago a conta. "Tudo bem, amanhã eu pago! Eu resolvo isso!" Acendeu um toco de vela e com ela, iluminou uma fresta do cômodo, o suficiente para ter um raio de luz e alguma sombra, de forma a guiá-la em sua tarefa, já que não havia uma janela, só um exaustor que puxava o ar quente para o prisma de ventilação.

Depois de alguns minutos, abriu a pequena porta de vidro e entrou no box, para sentir o calor da água. Precisava relaxar. Deixou que a água batesse forte em sua nuca, nas costas, em seu dorso...o calor foi aliviando todas as tensões e dores do dia anterior que teimaram em resistir ao sono. A água escorria por seus cabelos, agora tão cumpridos e chegava aos seus pés pequenos(sempre achou que seus pés eram pequenos se comparados à sua altura). Curtiu aquele momento.

Ensaboando-se de olhos fechados, como se conduzisse uma experiência muito particular, pôde sentir seu corpo, suas dobras, seus montes, suas cavernas, braços e pernas, cabelos e pêlos, rosto, pele. No escuro, tudo tão bonito e cor de âmbar. Tudo tão vivo e pleno de desejo. Sentia o prazer do banho, de passar as mãos ensaboadas pelo seu corpo, tocando cada parte com a suavidade com que gostaria de ser tocada. Aquele era um momento só seu, e ela tinha que aproveitar cada minuto. Havia muito tempo que ela não se sentia tão viva.

Estava sozinha, como se há muito já não estivera. Mas estava realmente sozinha. Com tempo para pensar, refletir, sonhar, planejar. O tempo agora parecia ser muito. Todos os dias, o tempo era só seu. Tempo para se curtir, tempo para se conhecer, tempo para entender os seus desejos. De uma hora para a outra, começou a se perceber falando com Deus...muitas vezes ao dia, chamando por Ele e questionando suas ações e sua existência, como se estivesse em constante processo de meditação e reflexão.

Não tinha mais medo da noite. Não tinha mais a noite companheira insone. Agora, dormia bem. Sonhava com os anjos. Quando chegava em casa, que apesar de modesta era só sua, encontrava tudo do jeito que havia deixado, sem interferências. Valorizava o seu trabalho. Não precisava mais de licença para ser feliz. Podia chorar, sem que fosse escondido, podia rir do que quisesse, podia escolher com quem estar. Liberdade...

II

Aquelas escolhas tinham sido difíceis. Mudar tudo exigiu dela muito planejamento, muita tomada de decisão. Ela teve que descobrir o que queria, como pensar sozinha, temendo fazer as piores escolhas, mas certa de que aquele relacionamento estava por esgotar-se, e que o futuro que se podia vislumbrar era terrível.

Agora, quando olhava para as paredes de sua casa, não as encarava mais como as grades de seu cárcere. Não temia mais ter que conversar com elas, não se via mais tolerando um ambiente tão desarrumado e hostil. Ela mesmo tinha se tornado uma relaxada. Não tinha mais prazer em cuidar de nada. E agora, tinha a chance da felicidade. Sozinha ou com qualquer um.

Está certo que teve que enfrentar resistências de todos os lados. Da família, dos amigos, do próprio marido. Ninguém queria que ela partisse neste vôo cego. Achavam muito arriscado. Mas o que é a vida senão um grande jogo arriscado? Às vezes a gente perde, noutras, ganha. É a roda da fortuna.

III

Ela teve muito medo...medos de todos os tipos a assombraram.

Medo de deixar seu marido sozinho e ter que arcar com as consequências de seus atos..."Eu não sou mãe dele, meu Deus, por que sinto tanta culpa pelo que ele faz?"

Medo de ter que aprender a dizer: "Eu quero, eu posso"... Lembrou das várias vezes em que, estudando História com seu pai, teimou em repetir que não conseguia entender ou decorar o tópico e ouviu novamente as suas palavras: "Nunca diga que não consegue...você consegue tudo que quiser...basta querer!" E ficou mais uma vez feliz em saber que havia aprendido aquilo com seu pai.

Medo de ter que sair em busca da felicidade, já que tinha ficado esperando ela bater à sua porta por tanto tempo. Aquela postura tinha se transformado em inércia, em imobilidade. Era como se ela não soubesse mais se merecia se feliz, depois de tudo que havia passado.

Medo de não ter mais chance de ser mãe. Aquele era um medo maior. Mas, durante algum tempo ela chegou a ter medo de por no mundo um filho para carregar tanta tristeza, para ver as ações degradantes de um pai que sofria e estravazava na bebida, fazendo com que todos a sua volta sofressem, como num círculo vicioso. Quanto mais ela reclamava que não queria mais sofrer, mais ele se entregava ao vício e insistia em dizer a todos que aquilo não era doença, que ele o fazia de forma consciente. Se era consciente, era ainda mais cruel.

Medo de ser feliz, por fim. "Como lidar com a culpa de ganhar outra chance de ser feliz, se quem ela gostava estava tão mal? Deus, será que eu não posso deixar o passado para trás?"

IV

Era tudo diferente, finalmente. Não precisava mais se esconder atrás de um estereótipo. O estereótipo de mulher séria. Começou a mudar lentamente. Voltou a praticar exercícios físicos, e a ter vondade de se cuidar. Tinha tempo para isso.

Mudou de tudo um pouco, à medida que ia se transformando por dentro. Pintou os cabelos de ruivo então. Seu marido sempre disse que não achava que ia ficar legal, e para não desagradá-lo, ela os mantinha na cor natural. Mas os fios brancos eram uma das razões pelas quais ela se sentia mais velha do que realmente era. Passou a cuidar de suas unhas e a usar tons da moda, mais fortes, abandonando o branquinho habitual e tão desbotado, tão apagado.

Trocou as roupas, comprou roupas mais modernas. Passou a usar vestidos, que a tornavam bem feminina.

V

Aquietou-se. No trabalho, todos perceberam a mudança. Achavam que ela tinha um novo homem em sua vida. "Por que não podemos mudar por nós mesmos? Por que tem sempre que haver alguém na estória?"

Ela estava diferente, tinha um brilho diferente no olhar. Sim, um outro homem havia até começado aquilo tudo, mas o que ela sentiu por ele nunca chegou a se concretizar. Ela nunca disse para ele, ele não era para ela. Mas, ele foi responsável por tirá-la do lugar, por colocá-la em movimento. "Pedra que não anda, cria limo!"

Ela havia sonhado muito com aquele homem e desejado muito vê-lo feliz. Mas, quis o destino que não fosse com ela. E não foi.

VI

Hoje, ela estava ali. Saindo do banho. Sã e salva. Poderosa. Plena de si mesma.

Já falava mais dois idiomas. Fazia curso de decoração nas horas vagas.

Frequentava com os amigos o Clube dos Democráticos, na Lapa, para bailar. Havia aprendido a dançar. E se descobriu leve como uma pluma.

Trabalhava com crianças agora e, ao invés de um filho, havia ganho vários, postiços!

A felicidade teve um preço. Ela não se arrependeu de tê-lo pago...

terça-feira, junho 20, 2006

Mais uma vez, Rebecca...

I

A lua já estava alta. Céu escuro, estrelado, um silêncio enorme tornava todos os sentimentos mais intensos.

Ao longe, ouvia-se grilos, cigarras e o bater das asas dos morcegos. Eram os seres da noite insistindo em romper o silêncio que aprofundava a vida.

Na beira do lago, me sentia vidrada no espelho d'água. Os olhos não desgrudavam das bolhas, das pequenas ondas que se formavam (com frequência) do nada.

O lago me chamava, me chamava, me chamava...

Já era inverno e eu estranhava as cigarras, tão amigas do calor, anunciando diariamente as alvoradas de sol.

O frio do inverno pedia roupas quentes e tirá-las era realmente um ato de coragem.

Eu sabia bem o que sentira da última vez que tentara vencer o lago: frio, dores, cãibras nas pernas e pés. Depois, tivera um pouco de nojo ao pisar o lodo do fundo do lago, terreno mole e escorregadio.

Mas o lago estava lá, majestoso, me chamando.

Despi-me de minhas roupas, casacos, meias, gorros, écharpes, luvas, tudo! Nua, despi-me também do meu pudor, da minha vergonha. Com a ponta do dedo do pé toquei a água do lago, a fria água do lago.

Era hora de atrever-me, de atirar-me com a coragem que o lago gelado pedia. Eu queria a liberdade que o banho me traria. Um mergulho, uma só sensação de prazer intenso.

Meus cachos vermelhos se libertaram com o movimento das águas, minhas mãos amoleceram ao seu toque, meu corpo flutuou como se sem gravidade estivesse. Tudo ali era sem gravidade. Era suave, macio e reluzia no reflexo da luz solar refletida na Lua.

Ali só havia eu. Ali, mais ninguém tinha importância.

Sentia-me como que no ventre de minha mãe. Como se estivesse nadando - privilegiada - no ventre da mãe Natureza. Sentia o contato com peixes que habitavam o lago. Estava tão livre que nem lembrava da minha nudez.

II

Não supunha, nem esperava, que aparecesse alguém por ali. Mais alguém naquele ambiente era anti-natural.

Imaginava estar tão perto de Deus que comecei a mentalizar uma conversa. Recordei fatos marcantes da minha vida, lembrei-me de outras belas paisagens, de viagens, dos lugares por onde andei, dos amigos que fiz. Perguntei a Ele porque tinha sido tão bom comigo. Por que tantas graças? Por que tanta força?

De repente, senti uma presença tão forte, tão grande... ouvi uma voz doce e macia, um som, uma música... Era como se a voz e água do lago fossem uma só entidade. Senti-me como vivendo um milagre. A luz da Lua se misturou a luz daquela entidade e a noite clareou sobre a minha cabeça.

Momento mágico e belo, senti-me abençoada, como seu tivesse ganho mais chances, mais força, mais vida.


III

Sem noção do tempo em que fiquei flutuando no lago, e sem me dar conta da madrugada que caía, deixei o conforto da água e coloquei a roupa. E segui a trilha de volta para a casa, ansiosa por uma xícara de chocolate quente.

De súbito, um empurrão, a queda, um golpe certeiro.

IV

(...)
O parto foi tranquilo. A menina nasceu calma, pouco choro, cabelos de fogo, cacheados. Os pais estão felizes. Seu nome é Rebecca. Às vezes, à noite, ao invés de chorar, ela ri (de prazer, talvez), como se lembrasse de experiências vividas em outras vidas. Gosta muito de água. Sua avó diz que ela é abençoada. Amém.

segunda-feira, junho 19, 2006

Mais do Drummond

Amar o perdido deixa confundido este coração.
Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do não.
As coisas tangíveis tornam-se insensíveis a palma da mão.
Mas as coisas findas, muito mais que lindas,
Estas ficarão.

[Carlos Drummond de Andrade]

A mão

Dedo mindinho,
Seu vizinho,
Pai de todos,
Fura bolo,
Mata piolho...

É o polegar!

Falanges, unhas, peles, palma,
a alma da mão.

Linhas e montes lunares
que mostram seus caminhos
tão tortos, sinuosos,
onde será que vão dar?

Filhos, doenças, amores,
nas mãos o destino de
quem acredita...
e quem teima em duvidar?

Vou viver muito?
Vou viver pouco?
O quanto a vida é relativa?
O quanto da vida se eterniza?

Se o beijo é no dorso da mão,
eu te respeito!
Se é na palma, te entrego
o meu amor.
Beijando sua alma,
sua palma da mão
eu me eternizo,
sou só sorriso,
Compreensão.

Dona da raiva

A raiva resolveu me invadir hoje,
sem pedir licença,
sem ligar pro fato
de que eu não baixei a guarda.

Tirou-me do sério,
deixou-me como louca,
transtornada,
bradando impropérios
aos ventos.

Nestas horas,
sinto que as pessoas não me ouvem,
não me vêem.
Vêem como a um bicho acuado,
irritado, que não mobiliza,
nem imobiliza,
apenas cai no descrédito.

Nestas horas, não sou eu,
sou apenas um resto do que
outrora eu gostaria de ter sido.
Sou apenas um ser desprezível,
que não se controla,
que não sabe que calar
é muitas vezes mais importante
do que gritar, do que expelir
a raiva contra o outro.

A raiva é teimosa,
esquenta, arrebenta com a voz,
tortura e deixa um gosto amargo
do que foi dito intempestivamente,
sem reflexão,
com o coração exposto,
pronto para ser fatiado
e assado num espeto de churrasco.

A raiva maltrata e machuca os outros.
Mas machuca mais a mim,
que sofro pelo descontrole,
pelo desabafo
mal dado,
mal dito,
maldito!

Hoje a raiva me invadiu,
me tornou insana,
me enfraqueceu a alma.
Me quebrou.

Um segredo

Verdes, laranjas e violetas iluminam
uma pequena igreja que brilha sozinha
emoldurada pelo crepúsculo do anoitecer.
No rádio, um blues romântico embala meus sonhos.

Se eu sonho acordada, não vejo mais nada.
Me sinto inebriada com tantos devaneios...

A igreja, o anoitecer e o blues
compõem um cenário bonito e melancólico
para um sonho de amor.

Fecho os olhos e esqueço
que estou nesse ônibus
rodeada de pessoas que desconheço.
Elas não escutam meu blues,
não sonham o meu sonho,
sequer percebem o cenário a nossa volta.

Não sabem com quem eu sonho, umas tolas.
Nem vêem a boca que eu beijo, os olhos que eu vejo.
Não sabem que mãos enlaçam as minhas mãos,
nem os braços, que me envolvem num forte abraço,
tão reconfortante!

Não sabem de nada. É o meu segredo!

De olhos fechados, seu cheiro me invade,
me toma conta, parece que você está aqui,
ao meu lado, tão real,
tão perto, tão certo.
Quase posso sentir seu hálito, seu perfume,
ouvir o seu riso,
rever a linha da sua mão, tão longa,
tanto para viver...

No blues, a mulher pede mais uma chance...
Mais uma chance.

A paisagem se torna mais familiar...
as ruas, as árvores, as pessoas,
esse lugar que é tão meu.
E não é de ninguém.

Vida real que me chama.
Estou quase chegando.

Acordo sem você desse sonho de amor,
Sabendo que amanhã tem mais.

domingo, junho 04, 2006

A Um Ausente - Carlos Drummond de Andrade

A Um Ausente

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.


Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


Carlos Drummond de Andrade

Invernais

Este ano meu outono amanheceu inverno.

Tempo frio, gelado, solitário, como são os pólos do planeta.

Como um novo hábito, caminho pela cidade que escurece mais cedo, passo apressado, corpo curvado de frio e solidão. Novos amores estão em cada canto, mas não para mim.


Dobro as esquinas e sinto o vento frio e úmido batendo em meu rosto. Não encontro você, nem vejo um rosto amigo sequer. Somos todos estrangeiros nesta fria cidade natal.

Hoje, a atmosfera que nos envolve é tão pouco comovente, tão opressora, tão cerceadora, que não nos resta nada além do silêncio.

Não encontro você, nem quando procuro por ti, nem quando espero pela obra de um acaso que alguns chamam de "destino".

Por todos os lados, vejo cinzas, marrons e negros que vestem a paisagem e as pessoas, também curvadas de frio e pela chuva fina, tão tristes.

Por dentro, ardo. Em febre. Insana.

Olho para as pessoas buscando em seus olhos um pouco de compreensão para esta angústia enorme que é não ter você junto de mim. Não há sinal de compreensão. Não há o que compreender.

Os ventos que te sopram a face e desarrumam teus cabelos enquanto você doma seu cavalo motorizado pelas autoestradas dos pampas, não me trazem o seu perfume, mas não te apagam de mim.

Não me desapego deste amor. Quanto mais te quero, menos tenho você. Quanto mais te chamo, para mais longe você vai.

Por um curto espaço de tempo, achei que era possível, que era para mim, tão possível, que quis mudar tudo para seguir sua trilha pelas estradas nos campos do sul.

Os pampas estão descobrindo tua presença, homem forte, determinado, viril. A neve, quando cai em teus caminhos, te acaricia e te faz mais alvo...branco e sonhador.

Teus sonhos te levam para mais longe e o tempo teima em não passar mais rápido enquanto vais. Por aqui, esta umidade opressora me envolve e me mata, cada dia um pouquinho, de frio e de saudade.

A fórmula para te tirar de dentro de mim talvez a primavera me traga. O sol que vai me dourar a pele e amornar meus dias, me encherá de esperança e me fará ver algo mais na vida além de ti.

Se eu respirar fundo um dia cheio de esperança e puser um sorriso novo em meu rosto, talvez o destino me traga você.