sábado, janeiro 16, 2016

Dos amores contemporâneos


Hoje em dia, tão comum quanto esbarrar num amor atravessando o sinal, é encontrar alguém nas redes sociais ou nos aplicativos de encontros amorosos. O difícil é saber se comportar num relacionamento deste tipo depois.


A primeira coisa que se repara é se a criatura trocou o status na sua rede social, se disse que está num relacionamento sério, ou se continua livre, leve e solta como antes. Dói quando ela mantém tudo como antes, mas é preciso ter consciência de que cada um tem o seu tempo. Além disso, não se pode esperar que seu novo par não tenha tido vida antes da sua chegada. Existiam as paqueras reais e as virtuais, as amizades reais e as virtuais, os lugares onde nós estivemos e onde os outros estiveram, e os momentos felizes que ambos passamos. Querer que seja tudo diferente, que as coisas mudem com a chegada da nova pessoa, é muita utopia. Nem sempre quando uma porta está aberta, é atrativa para que alguém entre, mas se alguém entra, naturalmente, é por que algo a atraiu. E o que a atrai é o rico mundo interior do outro.


 

Devia haver uma etiqueta para relacionamentos nas redes virtuais. Devia ser proibido criar um perfil para o casal ou mesmo usar a foto de perfil como a foto do casal. Confunde as coisas e, ao mesmo tempo, dá a falsa impressão de que aquele que ali está só existe na presença do outro, que não tem individualidade. E se mudar tudo amanhã? E se não estivermos mais juntos? Deixaremos de existir? Como casal, sim, mas como indivíduos que se expressam, criam, se relacionam, claro que não.



E quando tudo vira ciúme? E quando a criatura resolve tornar-se amigo(a) de todos os seres que podem inspirar algum tipo de interesse para o seu par? E quando insiste em ser a primeira pessoa a curtir todas as fotos, todas as postagens, e endossar todas as opiniões, como se a sua não tivesse relevância? E quando curte os comentários das pessoas para marcar presença, fazendo um "xixi virtual" no campo do inimigo, ou contraparte? Chega a ser patético...



Precisa explicar para essas pessoas que o amor-próprio é algo que deve ser valorizado em ambos os mundos: o real e o virtual. Que a gente precisa deixar o outro viver, que quando a gente deixa o outro livre, temos plena certeza de que ele volta porque quer e não porque não tem opção...



Só muita terapia para entender...

sexta-feira, janeiro 15, 2016

Pandora


Como se pudesse haver programado alguma coisa para o futuro, abriu o envelope que havia enviado para ela mesma há cinco anos atrás e que se perdeu no caminho, e pôde notar que uma certa melancolia invadiu o ar.



Todos aqueles sentimentos guardados ao longo daquele tempo retornaram, com uma força inexplicável. Era como se ela estivesse novamente no meio daquele turbilhão de emoções e, principalmente, como se não soubesse novamente como lidar com elas.


Mas, ela sabia, há muito tempo que sabia. Tinha aberto uma gaveta nas profundezas da alma e escondido aquilo tudo, como se possuísse uma "caixa de Pandora" interna. Todo mundo tem uma. É melhor para todo mundo que eu faça isso, ela pensou. Assim, manteve intacto o sentimento, há muito tempo fora da pauta das conversas semanais com a sua analista.


Tinha aprendido a lidar com a inveja, o ciúme, a solidão, a saudade, e todo um conjunto de sentimentos que ela preferia dispensar, e que nunca sonhou sentir com tamanha intensidade. Pusera uma máscara de mulher feliz e limitou-se a falar muito pouco, de trabalho e amenidades, principalmente, para que ninguém, jamais, em tempo algum, pudesse suspeitar dos sentimentos dela. Ainda mais, quando percebeu que alguns deles não eram nada nobres.


Sabia que não era bacana querer a vida dele. Ou melhor, querer a vida que a mulher dele tinha com ele. Como se isso fosse possível. Amor é coisa de pele, paixão é coisa de química. As pessoas não são assim tão facilmente substituíveis. Elas são o que são, e o que significam para nós. Tomar o lugar da mulher dele não seria tarefa fácil. Ainda mais que eles não tinham problemas. O que ele tinha era excesso de safadeza, vontade inexorável de se provar gostoso o tempo todo, necessidade de cortejar e seduzir. Só pelo prazer do jogo. E a boba tinha caído nesta sua lábia feito pata.


Saber disso também era algo que doía. No início, foi bom. Fez bem pro ego. Ela mudou seu jeito e jogou o jogo. Depois, percebendo que a relação não teria nenhum futuro, foi deixando de lado o que sentia, e substituindo aquela vontade de estar com ele por uma raiva sem tamanho. Do medo de deixar de existir na cabeça dele, ela passou a ter raiva por ser mais uma.


E agora estava ali, diante do envelope no qual havia sepultado toda uma gama de sentimentos que afloravam, e que ela só queria manter guardados em sua “caixa de Pandora”. Teve medo, sentiu raiva, e depois fez o que vinha fazendo há tempos: deu dez passos para trás. Olhou a situação como uma expectadora. Deixou todas as expectativas e os sentimentos ruins pelo caminho e viu o caso com outro olhar. Tinha assim tanta importância? Não. Havia ficado no passado, como todo o resto. Com o tempo, a forma de olhar para ele também ficou. Descobriu que a grama do vizinho não era assim tão verde, e que aquela vida perfeita não era assim tão perfeita. Colocou o homem que a cortejava em seu devido lugar e foi viver a sua vida. Aprendeu a se priorizar, sobre todas as coisas e pessoas, e entendeu como isso podia fazê-la tão mais feliz. 


E descobriu que a felicidade é simples, com ou sem “caixas de Pandora” para esconder as coisas...

terça-feira, janeiro 12, 2016

Bowie, the starman...



 


Ontem a gente perdeu um dos grandes artistas da história da música. Considerado por muitos um camaleão, David Bowie era um formador de opinião poderoso, um criador de tendências, um influenciador dos mais potentes, na música e na arte.


A perda de alguém tão criativo nos leva a refletir sobre vários aspectos do seu trabalho, e dá um certo medo de ficar sem a sua arte rara e única. Por isso, eu, como a maioria dos meus amigos que curtem o cara, passamos o dia ouvindo suas músicas, vendo seus clipes tão inovadores e a frente do seu tempo, e fazendo uma playlist das mais queridas, para não mais esquecer.


Ontem, ouvi gente dizendo que não conhecia o cara, que não tinha familiaridade com o seu trabalho. Mas, como não? Ele era quase onipresente, com músicas marcantes e profundas.


Eu fiz a minha listinha de músicas amadas, que não estão em ordem de prioridade, mas que eu escuto sempre que posso...


1.
Modern Love
2. Absolute Beginners
3. Under Pressure
4. Fame
5. Let’s Dance
6. Life on Mars?
7. Starman
8. The Man Who Sold the World
9. Changes
10. Sound and Vision
11. Let’s Spend the Night Together
12. Dancing in the Street
13. Space Odity
14. Rebel Rebel
15. Day in Day Out
16. All the Young Dudes
17. Tonight - Tina Turner
18. Hallo Space boy - feat Pet Shop Boys
19. This is Not America - feat Pat Metheny Group
20. Sorrow
21. Ziggy Stardurst
22.
Lazarus (do Blackstar)
23. Ashes to ashes
24. Heroes


São tão lindas, mas tão lindas, que às vezes de ouvi-las, perco o fôlego e sinto uma lágrima escorrendo pelo rosto.



Vá, Bowie, volte para a casa. Estaremos aqui esperando que um dia apareça alguém tão genial como você em sua odisseia espacial. Não vou te desejar que você descanse em paz, porque você não é desses de ficar descansando.


"I don't know where I'm going

from here but I promise

it won't be boring..."
-- David Bowie

A menina que ficou invisível



Rafaela, ou Rafinha para a família, ia todo dia pra escola sozinha, apesar de ter apenas seis anos. Sua mãe sempre a criou com muita independência, porque ela tinha que trabalhar e precisava que seus três filhos cuidassem um dos outros. Os dois mais velhos estudavam de manhã e Rafinha à tarde. Era impossível para sua mãe ou pai voltar em casa na hora do almoço para levá-la à escola e como sua escola ficava na esquina da rua debaixo, Rafinha ia sozinha e voltava com a companhia de algum amiguinho.

Todos os dias, quando ia para escola, passava por seu Antônio, que tirava a sesta na porta de casa. Às vezes, ele não estava dormindo ainda, e via a menina se aproximar. Nunca falou com ela, porque era um senhor muito tímido, mas ficava feliz em vê-la, e acabava por ser um pouco o seu anjo da guarda, já que cuidava do seu caminho por um bom pedaço. Rafinha gostava de ver aquele vovô no caminho e gostava mais ainda quando ele estava acordado. Ela sempre foi também uma menina muito tímida, que buscava desde muito pequena por sua privacidade, numa época da sua vida em que ela não sabia direito nem o que essa palavra significava.




O tempo foi passando e Rafinha foi crescendo. Um dia, como seus dois irmãos mais velhos, ela passou a estudar de manhã, entrando às 7 horas e saindo às 12:30. A necessidade por solidão foi ficando cada vez maior. O vô Antônio estava sempre ali, na porta de casa e, com o tempo, eles descobriram seus nomes e passaram a dizer "Oi", "bom dia" e "boa tarde" quando se viam. Seu Antônio ficava feliz com os encontros e sempre comentava com Dona Maria que Rafinha estava ficando uma menina muito bonita, à medida em que crescia. Pena que não sorria.

Rafinha, uma garota muito estudiosa e aplicada, era ainda muito tímida. Seus irmãos puxavam assunto, implicavam com ela, chamavam-na para brincar. Só o que ouviam como resposta era "Me deixa quieta, eu quero ficar sozinha".

Um dia, quando sua mãe chegou do trabalho, procurou por Rafinha e não a encontrou. Chamou, chamou, deu uma olhada na rua, e nada. Perguntou por ela para seus irmãos e eles não sabiam dela. Entretanto, ela estava ali, no seu quarto, só que tinha ficado invisível. Rafinha falava, mas ninguém ouvia. Acenava, mas ninguém via que ela estava acenando. Rafinha os tocava, mas eles não sentiam o seu toque, nem os seus irmãos, nem seu pai, nem sua mãe. A menina foi ficando nervosa, tomada por um desespero, o desespero de ser invisível e querer ser vista. De repente, ela sentiu o quão importante a sua família era para ela.

Sua mãe buscou ajuda da polícia. Avisou que sua filha havia desaparecido. O policial perguntou se ela havia sentido falta de alguma peça de roupa. Ela disse que não, apenas a roupa que ela usava naquele dia. Não faltava mala, nem mochila, nem bolsa de mão. Rafinha havia deixado seu material da escola, seus livros, e seu estojo de lápis. A mãe passou a temer que a filha tivesse sido raptada. O policial conversou com Seu Antônio, que disse ter visto a menina voltar para casa, mas ninguém foi capaz de dar uma pista que levasse a polícia a desvendar este mistério.

Como toda família esperançosa, mantiveram intactos os pertences de Rafinha. Seu lugar à mesa também estava sempre lá, pois sua mãe pensava que ela poderia entrar pela porta a qualquer momento. Rafinha sentava à mesa com sua família e tentava participar da conversa, mas eles não a viam, nem ouviam. Ela sempre pegava um bife, um pouco de batata e até comia salada para agradar à sua mãe, mas ela não enxergava nada do que fazia. Era como se os garfos e as facas estivessem ali, imóveis, como se nada se mexesse enquanto a menina comia. Seu Antônio sempre perguntava aos pais da menina se tinham alguma notícia. Rafinha até tentou falar com ele, mas ele também não a viu.





Um dia, ela começou a perceber que não ia conseguir voltar a ser vista se não bolasse um plano. Mas, tinha que ser um plano bom, para que surtisse efeito. Rafinha começou a perceber que quando ela sentia alguma coisa forte, ela piscava uma luz intensa, que os seus pais viam, mas não entendiam. Então, ela se deu conta de que o quê importava era sentir, e mais ainda, mostrar o que sentia. Talvez assim, ela voltasse a ser vista. Durante tanto tempo, só o que ela tinha feito era tentar ficar sozinha, e esconder seus sentimentos. Quem sabe mostrando-os para seus pais, ela fosse capaz de reaparecer?

O primeiro a vê-la foi seu irmão mais velho, o Pedro. Ela viu sua sombra no quarto, e tomou um susto. Mas, como Pedro era muito corajoso, ele chegou perto da sombra para ver o que a estava provocando e viu que era a luz da Lua que entrava pela janela. Ele perguntou: - Quem está aí? E Rafinha, fazendo toda a força do mundo, disse ao irmão: - Eu te amo meu irmão, eu nunca quis ficar longe de você. Me ajude a voltar, eu estou aqui. Pedro, surpreso, de ver a irmã, ainda um pouco transparente, perguntou a ela: - Por que você foi embora? Por que você fez a gente sofrer deste jeito? Rafinha então tentou se justificar, mas como o sentimento foi ficando fraco, ela sumiu novamente.

No dia seguinte, durante o café da manhã, Pedro contou aos seus pais que havia sonhado com a Rafinha, que ela estava bem, mas que estava próxima a eles, invisível. A mãe riu com descaso daquela história e disse: - Quem me dera, Deus meu, que isso fosse verdade!

O tempo foi passando e Rafinha descobrindo que tinha que sentir com vontade, que precisava querer ser vista, que tinha que mostrar o que sentia e deixar claro para quem era querido que ele era querido. E aí ela começou a refletir sobre isso e pensar em quem tinha real importância em sua vida. Pensou em todo mundo e pensou no vô Antônio.

Um dia pela manhã, Rafinha resolveu ir até a casa do vô Antônio para falar com ele. Foi caminhando e notando a rua. Percebeu coisas que nunca tinha visto, porque andava sempre muito concentrada, focada em seu mundo interior. Reparou na plaquinha da Padaria. Viu a arrumação cuidadosa dos jornais da Banca de Revistas. Mexeu com o gato branco da barbearia. Descobriu que o dono do bar da esquina tinha um cachorro de pelo preto. Sentiu o calor do sol na sua pele. E se perguntou como nunca havia percebido tudo isso. Era como se estivesse ganhando uma nova chance de viver de novo. A medida que ia vendo as coisas, e reparando nas pessoas, animais, paisagens e sensações, ia ganhando cor. Era como se estivesse voltando.

Chegou na porta da casa do vô Antônio, e gritou por ele. Gritou forte. Nada. Depois de alguns instantes, gritou de novo, a plenos pulmões. Vó Maria então ouviu um barulho estranho vindo da porta e foi conferir o que era. Ao abri-la, não enxergou ninguém, mas conseguia ouvir alguns sons estranhos. Ao olhar contra o sol, viu uma sombra sutil e reconheceu a menina. E começou a conversar com ela. E ela foi perguntando do vô Antônio, até que a senhora revelou a ela que ele foi internado na noite em que ela sumiu. Estava hospitalizado desde então.

Ela perguntou em que hospital vô Antônio estava e foi ao seu encontro. Chegando lá, vô Antônio estava dormindo em um quarto sozinho. Entrava um solzinho pela janela, que esquentava o quarto. Ele estava coberto por um lençol azul. O quarto era muito limpo e silencioso. Rafinha chegou perto dele e segurou docemente o seu braço. Ele acordou e olhou para ela. Ela então sussurrou: fica bom logo, vô Antônio. Preciso que o senhor me ajude a voltar a ser visível. 

Ele então olhou bem fundo nos olhos dela e retrucou: ué, Rafinha, mas eu estou te vendo perfeitamente. Ela correu pro espelho e lá estava, em todas as suas formas.

Vô Antônio então abriu um sorriso e, em poucos dias, recuperou-se plenamente e voltou pra casa. Rafinha correu para casa, para os braços dos seus pais. Eles ficaram surpresos de ver que ela havia crescido, mais do que isso, havia amadurecido, estava bonita, falante, e, principalmente, valorizava todas as oportunidades de expor seus sentimentos.

Cresceu, mas não perdeu a sua doçura. Conversava com os seus irmãos como se fora uma irmã mais velha. A cada dia, ganhava o respeito dos dois. E sentia-se plena e solar, consciente do que queria e do que não queria. 

Aprendeu a duras penas a sua lição: a gente precisa ser para fora, mostrar o que sente, para poder viver intensamente nosso mundo interior.