sábado, janeiro 26, 2013

Sopro...

Você veio com força, com a força de sempre. Se na memória estava a primeira tentativa, na qual a porta encontrou um pé, um braço, um corpo dizendo "não", desta vez você veio preparado para abrir. Forçou tudo que havia pela frente e entrou.



Deixaram você entrar.

Veio com fome, querendo tudo que você achava que lhe era de direito: queria o corpo, queria a alma, queria o coração, principalmente. Estava disposto a jantar aquele coração pulsando arrebatado por você numa baixela de prata sobre a mesa, como um viking voraz.
 


Queria as noites estreladas, queria o sol inundando a vida de luz, queria tempestade para florescer os campos, queria guerra, queria paz... Já não se importava em nominar o que sentia, como ela...

E com voracidade e beleza, foi cuidando do que achava que era seu. Aos poucos, pareceu indispensável. Quem deixou você entrar passou a temer que você quisesse sair. E se quisesse?



 
A vida é mesmo uma caixa de surpresas, nunca se sabe que ideia se pode ter para o próximo intervalo: levantar, fazer uma pipoca, tomar uma água? Que dirá manter-se junto uma vida inteira.

Enquanto você quis, dominou a cena, foi protagonista. Naquele quarto úmido, no qual odores de suor misturavam-se aos perfumes do amor que você plantou, viveu feliz o tempo que quis, o quanto quis. Quando ela percebeu que não adiantava tentar controlar o tempo e que a decisão não era dela. Então, esperou pelo desfecho final, o encaminhamento da fita, com trilha sonora e tudo... sabia que não podia com você.

Deixaram você sair.


E com a mesma voracidade que chegou, você saiu. Foi breve. Intenso, mas breve. E deixou um cheiro perverso e inebriante de almíscar no ar.




Música do dia: "Lovesong" - Adele

quarta-feira, janeiro 23, 2013

Rendição

 

Tá bom, eu me rendo. Você venceu. Pra quê resistir aos seus encantos? Eu que venho fazendo isso há tantos anos, agora não vou mais resistir. Tô entregando o jogo. Batalha encerrada.

(Ele abre os braços. Ela aceita o abraço.)

O que você quer de mim afinal?, pergunta ela, se desvencilhando do abraço de urso.

(Ele finge que não quer falar, colocando o indicador sobre a boca. Ela sorri, olhando para ele de soslaio.)

Você deve me achar uma idiota!

(Ele balança a cabeça, negando a afirmação, com cara de quem já está cansando da conversa fiada.)

Onde vamos chegar com isso?

 (Ainda sem falar, ele chega bem perto dela, acaricia seus cabelos, encosta seu rosto no rosto dela... e responde.)

Eu não sei. Só sei que é tudo o que eu mais quero na vida.

(Ela, enfim, se rende.)


terça-feira, janeiro 22, 2013

Libertar-se é simples...



Esquentou uma xícara de cappuccino e sentou-se confortavelmente em sua bergère para ler a carta recebida. Pela primeira vez, depois de muitos anos, e muitas correspondências trocadas, ela estava recebendo um envelope branco, uma carta tradicional, sem nada que desse uma pista de como estaria o estado de espírito dele.  Ele sempre desenhava nos envelopes.



Desde que se conheceram, em uma curta viagem ao exterior, ele sempre lhe mandava cartas, aquelas que os Correios entregam e que dão frio na barriga ao abrir. No início, ele era caloroso, carinhoso, mas curto nas palavras, escrevia pouco. Com o tempo, passou a escrever de todos os cantos por onde andava, e parecia ter prazer em lhe contar a vida.

Às vezes, quando ela abria os envelopes, encontrava fotografias dele, de lugares onde havia estado, nos diversos momentos em que ele havia se lembrado dela. Não fazia sentido aquilo. Por que ele havia transformado um encontro casual numa viagem curta num relacionamento tão próximo?... E ao mesmo tempo tão distanciado pelos caminhos pelos quais a vida os havia levado?



Sabia de seus segredos, e estes segredos os aproximavam, apesar da distância geográfica. E cada segredo vinha acompanhado de um presente, por vezes um livro, noutras uma jóia, em algumas ocasiões, bombons. Ele era todo atenção para aquela mulher. A mulher em quem ele nunca havia tocado, com quem ele nunca havia estado, mas que ele enxergava como a mulher da sua vida.

Ele foi para ela, durante muito tempo, a única pessoa que ela enxergava. Até que um dia ela deixou de acreditar no virtual, no potencial de um beijo nunca dado, de um abraço que nunca houve... e passou a buscar o real.


Como no muro de cartas a Julieta, em Verona, na Itália, as que chegaram depois daquele momento, passaram a ficar sem resposta. Ela deixou de corresponder, de responder, de atender aos chamados daquele homenzinho romântico. E as cartas foram diminuindo, ele foi compreendendo cada vez menos o silêncio dela, até que parou de escrever.

E ela sobreviveu ao soterramento dos "e se...?" que viviam a lhe atormentar a cabeça. Como se o fato de ser mais forte do que o amor daquele homem lhe tivesse, de repente, retirado os grilhões que lhe acorrentavam àquela vida de esperas.

E então, finalmente, ela pôde viver...

A carta de agora foi como um sopro do passado... parecia tudo tão sem sentido. Depois de anos de silêncio, ele não parecia nem de perto com a pessoa que outrora ela havia amado tanto. Assinava com "saudações", como se fossem velhos conhecidos que haviam se cruzado casualmente num sinal de trânsito.

Tomou um gole de café e recostou-se na poltrona. Fechou os olhos e deu um suspiro, concluindo que, assim como ela, e apesar de todos os descaminhos da vida, ele nunca se esqueceu do que viveram...