quarta-feira, outubro 10, 2007

Olho por olho...

I
Desceu a ladeira de acesso ao morro apressado, arrumando a camisa, colocando-a para dentro da calça, pensando no quão arriscado era perambular pelo morro às 5 horas da manhã. Tinha pedido a autorização do líder do grupo que controlava o morro, explicado que precisava sair cedo de casa, que às vezes tinha que assumir o turno das 6... Eles consentiram que ele continuasse vivendo ali com sua família, mas ele ficava sempre inseguro. Pensava nas crianças, em todos os riscos que já teve que correr para garantir o “pão de cada dia”...

Era quinta-feira, ele trabalharia dirigindo aquele ônibus até às 13 horas e depois voltaria para casa para continuar a construção da segunda laje. Era cada vez mais urgente terminar o quarto das crianças porque a patroa já não queria mais sexo na frente dos meninos, que estavam crescidos.

II
Ao chegar na garagem, encontrou os colegas e logo veio o Silveirinha falando ao pé do ouvido para pedir favor. “Ô, Moreira, preciso da tua ajuda hoje... quebra o meu galho, eu tenho um lance pra resolver!” “Não dá, Silveira...eu tenho que trabalhar na obra lá de casa...hoje não dá...” “Pó, Moreira, cobre meu turno, vai! Me ajuda, só hoje...eu juro que não te peço mais nada!”

O turno do Silveirinha começava às 16 horas aquele dia. Dia de jogo do Flamengo com o São Paulo no Maracanã. O Moreira não queria encarar este evento, ele sabia dos engarrafamentos, dos problemas, das torcidas organizadas, das galeras que invadiam e pilhavam os ônibus... O Silveirinha insistiu, insistiu, o Moreira resistiu bastante e...por fim, acabou cedendo.

Nem bem conseguiu avisar à patroa que não ia mais voltar cedo para casa, Moreira teve que assumir o volante do 433 – linha Barão de Drummond – Leblon – com um sorriso falso nos lábios e toda a paciência do mundo. Já estava na hora.

III
O dia foi comprido, parecia não passar. Moreira tinha muita competência em fazer seu trajeto no tempo estipulado pela empresa. Quase nunca havia sido advertido por este motivo. Aproximava-se a hora do jogo: 20:30h. Era incrível ver como a cidade ia parando. A Zona Norte, então, parecia que ia dando um nó. Moreira respirava fundo, enchia o peito de ar, pensava na patroa, nas crianças...

Passando pelo Estácio, Moreira sentiu um calafrio. De repente, um grupo de cinco crianças, de 9 a 15 anos, camisas do Flamengo por baixo de um uniforme municipal surrado, entraram no ônibus. Transformaram aquela viagem num aquecimento para o grande jogo. Aliás, naquele dia, todos pareciam estar em função do jogo. Afinal, era um dos lanternas contra o líder isolado do campeonato. David contra Golias, que era apoidado pela maior torcida do Brasil.

IV
O ônibus que Moreira dirigia naquele dia não era muito sofisticado, não tinha ar condicionado, mas era novo, devia ter no máximo dois anos e meio, se ele não tinha errado nas contas. Havia pouco tempo que a empresa tinha renovado a frota. Mas, era um “quentão”, como o povo chamava. Num engarrafamento como aquele, Moreira deixava as portas abertas, contrariando a recomendação da empresa de só trafegar com as portas fechadas. Grande erro esse seu.

Com aquele bando de crianças dentro do ônibus, era de se esperar que elas fossem inventar alguma coisa para passar o tempo. E criança adora brincar com o perigo. O líder do grupo, Quinzinho, decidiu que a onda era viajar pendurado na porta, segurando as alças de apoio da escada traseira. Foi rapidamente seguido pelos demais, que se alternavam na brincadeira perigosa. O vai-e-vem na porta e a algazarra começaram a perturbar os demais passageiros, que volta e meia viravam-se apreensivos para o fundo do ônibus. Afetaram também ao trocador e ao próprio Moreira, que já não sabia mais se concentrava sua atenção no trânsito engarrafado ou no que estava acontecendo dentro do ônibus.

De repente, como se encontrasse uma solução para o problema, e vendo o engarrafamento se dissipar a sua frente, Moreira decidiu fechar as portas. “Pronto, resolvi. Acabou!”

V
No meio do barulho de buzinas e roncos nervosos de motores daquele grande engarrafamento, Moreira então passou a ouvir gritos. “Meu pé, meu pé! Meu pé ficou preso! Ai, meu pé! Solta o meu pé!” “Moço, abre a porta, solta o pé dele, moço!” Os gritos passaram a ser cada vez mais altos, acompanhados de murros nas laterais do ônibus: “Motorista, abre a porta! Solta o meu pé! Meu pé ficou preso, motorista!” Moreira não queria acreditar que aquilo estava acontecendo, que um dos meninos havia ficado com o pé preso na porta.

Aos poucos, todos começaram a gritar e a esmurrar as laterais do ônibus. Os passageiros gritavam que era verdade e pediam que o Moreira, atônito, abrisse a porta do ônibus. Ele, numa espécie de transe, se levantava repetidas vezes para se certificar que aquilo estava mesmo acontecendo, sem, contudo, fazer o que as pessoas pediam, abrir a porta.

VI
O pé esquerdo do menino já estava ficando roxo quando o trocador gritou para o Moreira: “Porra, Moreira, abre a merda da porta! Agora!”

Solto daquela ratoeira, o pequeno e enfurecido líder do grupo resolveu que o ataque merecia uma vingança. Nestas horas, não se sabe como, sempre aparecem paus e pedras para servir de instrumentos para depredar e ferir. Moreira esperou pelo pior, como se o calafrio que sentiu já lhe tivesse avisado de que algo ruim fosse acontecer.

Janelas quebradas, pára-brisas rachado, laterais amassadas, passageiros aterrorizados...esse era o quadro que aquelas cinco crianças estavam pintando para Moreira.

VII
“Porra, Moreira, você está lesado? Por que demorou tanto a abrir esta porta?”, bradou o trocador, já recolhendo a féria do dia e pulando do seu assento, para encolher-se no corredor do ônibus.

Os passageiros então começaram a engrossar o coro do trocador. Um homem, de aproximadamente quarenta anos, partiu para cima do Moreira, questionando-lhe porquê ele havia exposto a todos daquela forma. Assustado, Moreira viu que, mesmo que ele não tivesse feito aquilo de propósito, não tinha aliados naquele ônibus. Ao contrário, já havia sido julgado, condenado, e só Deus sabia qual seria a sua condenação.

Pensando em levar o que sobrara do ônibus até uma delegacia de polícia, Moreira não percebeu que os passageiros se aproximavam dele com ganas assassinas.

VIII
Para sua sorte, uma patrulhinha se aproximava do local e seus ocupantes, dos policiais das antigas, conseguiram evitar o linchamento. Muito machucado, Moreira foi conduzido à 18a. DP, sem a companhia de seu colega trocador, que já tinha sumido muito antes deste desfecho.

O Flamengo venceu o São Paulo com um inexplicável 1 x 0. Segundo os comentaristas, foi a força da enorme torcida que empurrou o time.

Moreira havia acabado de sentir na pele a força de outro grupo. Todo o seu corpo doía. Já eram mais de onze horas da noite quando o delegado liberou Moreira para seguir para a garagem da Companhia com um Registro de Ocorrência que relatava a depredação e o quase linchamento.

IX
Chegando à garagem da empresa, Moreira não percebeu dois homens do outro lado da calçada, observando seus passos.

Entrou, procurou o supervisor, entregou-lhe o RO e, envergonhado, contou-lhe o que acontecera ao ônibus. Teve que ouvir, mais humilhado, as repreensões do homem e, por fim, perguntou se podia ia para casa. Seu dia derradeiro estava quase no fim.

Ao fechar o portão de ferro atrás de si, Moreira sentiu uma mão em seu ombro e ouviu alguém perguntar: “Moreira, do 433?” Foi o tempo de se virar para o sujeito e sentir um tremendo ardor queimando o pé esquerdo: um tiro dilacerante, de armamento pesado. Nem teve coragem de olhar para seu pé.

O homem que lhe chamou ainda riu, enquanto o outro jogou-lhe um bilhete.

“Da próxima vez, pense rápido, seu Mané! Ass. Quinzinho”

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