domingo, dezembro 27, 2009

Andança noturna

Enfiou-se sob a ducha gelada e sentiu a água cair sobre o corpo, arrepiando-lhe os pêlos. Temperou a água, abrindo a torneira de água quente, pois preferia um banho morno. Começou o processo ensaboando o braço esquerdo, o ombro, o pescoço, como fazia sempre, todas as vezes. Envolveu os seios na espuma fresca do sabonete novo e percebeu seu entumecimento. Estava sozinha em casa, pensou, e de novo. Percorreu seu ventre e esfregou suas pernas e pés, dando graças por tê-los saudáveis e fortes.

Cuidou do rosto, limpando olhos maquiados, têmporas e toda a zona T, usando uma loção adstringente que importara na última viagem. A noite caía rapidamente enquanto ela se dava conta do quão cansada estava, depois daquele dia árduo de trabalho.

...........

Em minutos, lá estava ela caminhando pela rua de paralelepípedos. Seus sapatos apertavam-lhe os pés e ela se esforçava para caminhar na ponta. Mas, não estava só, seu pai estava com ela. E também sua mãe, sua irmã e avó paterna, esta já falecida. Evitavam as calçadas estreitas, tomadas por carros. Seu pai caminhava junto ao trilho do bonde, atento a todos os sons, esperando que o veículo se aproximasse a qualquer momento. Tinha se encarregado de avisar ao grupo de sua chegada, mantê-las atentas, já que a noite caía vigorosamente e, aos poucos, o céu ensolarado dava lugar a um manto negro e estrelado que tornava perigosa a noite mal iluminada daquelas vielas.

Sentia-se cansada, ofegante, com dor nos pés, esperando pelo milagre de um táxi vazio para levá-los para casa. Não havia. Caminhavam desconhecendo o caminho, liderados pelo pai-marido-filho, confiantes no seu discernimento e senso de direção.

Ao virarem uma esquina, depararam-se com uma rua estreita, ladeada por um grande muro, do qual pendiam copas de árvores baixas. Nela, ao longo da via, estavam sentados sobre caixotes de feira, quatro homens negros. Um deles afiava uma faca, de cabeça baixa. Ao sentir a presença daquele grupo insólito, tão díspar dos demais habitantes daquele lugar, o homem parou o serviço e olhou na direção do pai, que imediatamente parou a caminhada e fez um sinal silencioso com a mão para que o grupo também parasse. A avó foi a última a entender que tinha que parar.

Conversaram brevemente em murmúrios e decidiram retornar. Buscando por outros caminhos, deram com uma outra rua estreita e comprida. De onde estavam, podiam ver toda a sua extensão. Porém, antes de prosseguir, viram que a rua era sem saída, procurando se certificar com transeuntes que aquele caminho não daria em lugar algum.

...........

De repente, ao buscar por seu pai, se deu conta que ele não estava mais ali, nem suas mãe e irmã, coadjuvantes da cansativa caminhada. Viu apenas a avó falecida a postos, cabelos brancos a lhe entregar uma vela com a imagem de Santa Rita de Cássia, apontando-lhe, ao mesmo tempo, a mesa onde deveria acendê-la. Rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria, conversou um pouco com ela, que respondeu às suas preces com sorrisos francos e serenos. Por fim, virou-se em direção à porta da Igreja, já iluminada pela luz do sol, que nascia pleno.

Angustiada com o caminho estranho e um pouco atormentada, esforçou-se para levantar o corpo. E acordou assustada e ofegante, mas pronta para encarar um novo dia.

Nenhum comentário: