sexta-feira, setembro 16, 2011

Colecionadora de receitas


Quando eu casei, aos 28 anos, ninguém me disse que a vida seria procurar por receitas. Naquela época, eu mal sabia fritar um ovo, passar um café... e tive que encarar as dores e as delícias da vida a dois.

Eu pensava que tinha alguma sorte porque quando casei meu marido tinha 35 anos e vivia desde os 18 anos sozinho. Então, ele sabia como fazer... arroz, feijão e tudo o mais (naquela época, eu ainda estava interessada em aprender apenas o trivial variado, para dar conta de um cardápio de dia-a-dia). Mas, ele não me ajudou muito não. Aliás, devagarzinho, foi deixando todas as responsabilidades da casa para mim. E nós nunca tivemos uma pessoa para nos ajudar, era tudo comigo e com ele (mais comigo do que com ele).

Ainda me lembro do dia em que, sentada no chão da sala do nosso pequeno apartamento alugado de 58 m2, eu liguei aos prantos para a minha avó e pedi que ela me ensinasse a fazer um arroz... soltinho. Lembro do desespero ao ouvi-la dizendo para eu fazer um refogado (o que era isso, meu Deus?) e para colocar água até que o arroz cozinhasse... Como assim? O quanto de água? Tinha que ser água fervente? Era muita informação para uma menina que tinha passado a vida dando aula para crianças* e, quando estava em casa, pouco levantava a bunda do sofá.

Depois de casada, uma coisa que a gente aprende é que não vai ter muito tempo de esquentar a bunda no sofá, e começa a ter uma saudade danada dos paparicos de mamãe. Logo que me casei, não tinha essa de buscar receitas na Internet. Então eu comprei um caderno de capa dura, assim como a minha mãe tinha o seu, e comecei a anotar tudo nos mínimos detalhes. Até o que era refogado. Demorei muito tempo para ter coragem de fazer um feijão na panela de pressão, não tive uma dessas até que achei que podia dominá-la, tinha medo que explodisse...

E com a internet, as receitas foram aparecendo, eu as fui colecionado, e hoje, cá estou, com um certo domínio dessa disciplina, me arrisco a fazer até sopa de ervilha na panela de pressão, mesmo a mamãe dizendo que a ervilha faz a panela explodir, sei lá porquê...

Sinto que passei a colecionar receitas, depois de casada. Receita de como equilibrar as minhas vontades com as vontades do marido - e às vezes até com as vontades de papai e mamãe e do resto da família. Receita de como demonstrar ao marido que estou a fim de namorar... aliás, muito a fim, porque quando é só um pouquinho, ele não enxerga! Receita de como ouvir certos desaforos em casa e não levar a ferro e a fogo, porque não tem jeito, a gente traz pra casa os problemas do dia-a-dia no trabalho, invariavelmente. Receita de como lidar com um telefone que não pára de tocar, e que meu marido não se habilita a atender, nem pra evitar que eu acorde.

Enfim, a gente acorda um dia e se vê responsável pela roupa de cama, de mesa e de banho. Tem que pensar no cardápio da semana e fazer a lista do supermercado. Tem que passar a roupa bem passada e ver o que tem que ser levado para a lavenderia. Tem que trocar os lençóis, pôr as toalhas pra lavar e ver se tem mancha no colarinho da camisa do marido. E não ganha nada por isso.

Ainda esses dias, de molho em casa, eu me dei conta de que, aos poucos, à medida que eu ia melhorando, essas responsabilidades iam voltando a cair sobre os meus ombros. Hoje, ouvi do marido que "tenho ainda uma semana para curtir minhas férias"... e que "ele não ia ficar em casa... mofando!" Vem cá!? Eu não estou de férias!!!! É a eterna busca por uma receita que nos faça compreender como lidar com essas palavras desagradáveis, esses sinais de intolerância de quem convive conosco, os atos de impaciência para com quem está doente em casa, entediado, vendo a vida pela janela da varanda e da internet.

Talvez eu esteja mesmo mofando. Tenho sentido mais frio do que o normal, tenho falado com as paredes, tenho tentado arrumar o que está fora do lugar. Mas, não consigo. Não, as coisas só ficam arrumadas até que ele chegueem casa. Aí, quando todas estão fora do lugar, o meu "marido-criança-grande" reclama que está tudo bagunçado. Desfarço, finjo que não entendi e sigo a vida mofada. Mas, como uma mulher que se preze, eu tenho até tentado manter as unhas feitas, o cabelo arrumado, uma roupinha descente. Tenho aturado a faxineira e seu rádio de oração todas as 5as. feiras, mas ela não me faz companhia. Coitada, ela mal enxerga onde está sujo e eu odeio dar ordens.

Só sei que preciso tirar um aprendizado disso. Percebi que conseguiria fazer um monte de coisas que nunca tive coragem, como costurar, por exemplo. Preciso achar qual a receita para os próximos anos.

Ah, e acho que tem muita senhora idosa, que vemos retratadas na tv, que já acharam uma outra receita-de-ouro: abaixar o volume do aparelho para surdez toda vez que a conversa não lhe interessa... Acho que vou ser uma dessas...

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* Eu sustentei as duas faculdades que fiz (condução + livros) dando aula particular. Fazia Engenharia de manhã, dava aula de 1 às 5 da tarde e depois emendava com a Administração das 6 às 10 da noite. Era barra. Mas, eu adorava. Ainda lembro muito dos meus meninos, e até da garotinha chinesa que alfabetizei, a Wenjin. Com saudades!

Um comentário:

Flor de Lotus disse...

É, a vida é cheia de receitas... o problema é quando não as achamos... Gostei! bjs