quarta-feira, janeiro 21, 2009

Terapia

Chegou no consultório às 17 horas. Com trinta minutos de antecedência, ficou se perguntando por quanto tempo teria que esperar pela consulta. Era comum esperar trinta, quarenta e, às vezes, uma hora, mas sua terapeuta dizia que esse tempo de espera fazia parte do processo de análise. Muitas vezes, se pegou pensando no assunto que iria tratar na sessão e, então, começou a se questionar se não inventava os seus problemas para fazer valer o dinheiro gasto com cada consulta. Até que ponto aquele tratamento estava dando resultado, ela não sabia, mas sabia que sentia uma vontade imensa de se conhecer melhor.

Sempre que tinha que esperar pela consulta, ficava observando cada detalhe daquele consultório pequenino na General Roca. A parede era revestida de tijolinhos. Os quadros na parede eram meio surreais, alguma coisa parecida com a pintura de Salvador Dali. Havia um banheiro e ela às vezes o usava, apenas para ver se as toalhas eram as mesmas ou se a terapeuta havia trocado o sabonete líquido. Não havia secretária, pois nem havia espaço para isso. Sua terapeuta era adepta da secretária eletrônica, que checava de tempos em tempos. Se estivesse aflita em receber alguma ligação, checava a secretária no meio da consulta, o que ela sempre achou muito estranho. Quando ficava ali, naquela sala de espera, raramente lia uma revista. Preferia ouvir ao rádio, que vez ou outra tocava uma música do seu agrado.

Naquele dia esperou por quarenta e cinco minutos, até que a porta se abriu e de dentro do consultório saiu uma moça jovem, com os olhos inchados de tanto chorar, lenço nas mãos, enxugando o nariz, e o rosto borrado de rímel. Ela se viu ali, naquela moça, como tantas e tantas vezes havia acontecido. Mas, ela, naquela altura, não chorava mais.

Carminha, a terapeuta, disse algumas palavras à moça e se despediu, acompanhando-a até a porta. Depois, virou-se para ela e a cumprimentou, orientando-a a entrar. Fechou a porta atrás dela e perguntou:

- Você não quer deitar?

Ela odiava deitar naquele divã e ficar de costas para a terapeuta. Tinha a impressão de que nesta posição, a terapeuta tinha mais liberdade para fazer caras de aprovação e de desaprovação, enquanto ela falava e, neste momento, ela preferia observá-la. Mas, tinham combinado que ela ia começar a deitar, que era importante confiar na terapeuta e em si própria e se preparar para devanear, dizendo tudo que lhe viesse à cabeça. Ela então deitou, apesar do desconforto.

- Como foi a viagem?, Carminha perguntou.

Ela não queria falar sobre a viagem, mas, de repente se deteve em um ponto importante... para ela.

- Você sabe, há algum tempo um fantasma habita a minha cabeça e a minha alma. De vez em quando, eu o vejo em outras pessoas e fico desconcertada...

Fez uma pausa longa, quando então Carminha perguntou:

- Onde você o viu desta vez?
- Desta vez, eu o vi no avião, “incorporado” em um homem alto, cabelos levemente grisalhos, óculos Ray-Ban modelo aviador, muito falante. Lembrou tanto, mas tanto, o meu fantasma particular, que chegou a me dar uma gastura. Eu olhava pra ele e meu cérebro me dizia que não era ele... nem as mãos, nem a voz, nem o rosto eram parecidos. Mas o jeito, ah, o jeito era igual.

Carminha tomou algumas notas. E perguntou:

- Como ele lhe chamou a atenção?
- Ele estava conversando com uma moça que havia acabado de conhecer ali no avião, pude perceber pela conversa. Pareceu-me um gêmeo, alguém tão parecido que só podia ter sido gerado do mesmo ventre da mesma mãe.

Carminha então respondeu, como boa terapeuta lacaniana, que conversa:
- Os fantasmas são assim mesmo, só aparecem quando querem. Por mais que saibamos que eles estão “mortos” e lá no fundo do nosso coração, os queiramos “mortos e enterrados”, eles insistem em aparecer por muito tempo, em nos fazer lembrar deles. É uma armadilha da nossa cabeça.
- Eu sei, eu sei. Quanto mais a gente vive, mais a gente sabe que tentar esquecer alguém, alguma coisa ou um fato, é apenas uma maneira eficiente de lembrar, de mantê-la dentro da nossa cabeça, em “banho-maria”, até que a gente descubra uma maneira de tornar a pessoa, a coisa, ou o evento menos importantes, quase irrelevantes. Eu sei que o tempo ajuda muito nisso, mas como dói. Conforme o tempo passa, menos a gente se incomoda e mais facilmente a gente lida com esses fantasmas.

Carminha então aproveitou a deixa e perguntou: - O que você sentiu ao vê-lo, além do incômodo?

- Um certo ciúme, como se ele estivesse ali, jogando charme para a moça. Ele, que era meu fantasma, não poderia estar fazendo isso. Tinha que estar pensando em mim. Mas, nem era ele, meu Deus. E nessa hora, pensei que pudesse estar ficando louca, pois tenho ciúme de uma ficção, mas não da vida real.
- Laura, faz muito tempo que você vem aqui. Você já se separou deste homem há três anos. Está certo, você vem tentando superar isso. Eu sei o quanto você sofreu quando soube que ele ia se casar novamente, mas está na hora de reagir. Você não pode esquecer que sua vida está passando. Você tem que ajudar o tempo a tirá-lo de dentro de você. Existem coisas que podem despertar o seu interesse e tornar este amor mais brando, menos sofrido. Fico imaginando o que você faria se o encontrasse na rua... sorte que vocês não tiveram tempo de ter filhos.

Laura então parou por um instante para refletir. E ficou pensando na última frase de Carminha. Ela era sua terapeuta ou já tinha virado uma amiga? Não estaria falando demais?

- Carminha, os meus fantasmas, eu sei, vivem apenas na minha cabeça, na minha imaginação. Eu já nem sei o quanto ele mudou, envelheceu... A minha obrigação é deixa-los quietos. De preferência, sem cutucar a onça com a vara curta. Eu sei que procurar por eles, buscá-los no fundo das “gavetas” do meu cérebro, só me traz mais tristeza, mais amargura, mais ansiedade. Eu sei que eu não era a mulher perfeita para ele, tanto que ele me deixou. Mas, eu sei também que vou sobreviver a isso, que eu sou uma sobrevivente e que um dia, ele vai deixar de existir. E se tivermos um encontro real, eu já não vou mais me importar tanto... (nesse momento uma lágrima escorreu no rosto de Laura, mas ela tratou de não deixar que Carminha a visse chorando). Levantou-se altiva, com o nariz empinado e disse a Carminha: - É isso por hoje.

Carminha respirou fundo e disse a Laura: - Pense mais sobre este episódio. Voltamos a falar nele na semana que vem, se você quiser. Uma ótima semana pra você.

E acompanhou Laura até a porta, deu-lhe dois beijos e lhe disse: - Até a volta.

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